São Paulo, domingo, 5 de junho de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

'Guerra de códigos' deu vitória aos aliados

JANIO DE FREITAS
DO CONSELHO EDITORIAL

A história militar da Segunda Guerra Mundial é falsa, mesmo nas suas mais consagradas obras. A história da invasão da Normandia e dos seus desdobramentos não é, como parte da história mais ampla da guerra, menos falsa.
Tais afirmações são audaciosas, mas impõem-se desde que um pequeno livro levantou a pontinha do segredo absoluto que cobriu, durante 35 anos, o que Eisenhower qualificou de "fator decisivo na vitória dos aliados".
Este fator foi o conhecimento das mensagens estratégicas e táticas trocadas entre Hitler, o Alto Comando alemão e os comandantes alemães nas zonas de guerra, desde o primeiro ao último tiro.
O sistema de códigos que os alemães consideraram indecifrável pelos inimigos, dada a codificação mudada a cada mensagem por uma máquina fantástica, a que batizaram confiantemente de Enigma, começou a ser decodificado pelos ingleses ainda antes da guerra. Era obra do serviço especial Ultra.
O relato revelador do que Churchill chamava de "minha fonte miraculosa", às vezes de "meu oráculo", foi escrito pelo inglês que coordenou a decifração, a análise e a distribuição das informações preciosas. Eram por ele mandadas a Churchill e aos principais comandantes ingleses e americanos e às vezes a Roosevelt.
Foi a idade, então 76 anos, que levou Frederick W. Winterbotham a narrar o que o segredo oficial negava, e nega ainda, ao conhecimento dos historiadores em particular e do mundo em geral.
"A proibição oficial a qualquer referência ao Ultra até este 1974 teve um efeito repressor sobre a historiografia militar", diz o marechal John Slessor, da Força Aérea britânica (RAF), no prefácio que se dispôs a escrever para "The Ultra Secret", em apoio à decisão de Winterbotham.
Ao deformar a história, o segredo permitiu a glorificação bélica dos aliados ocidentais e dos seus comandantes, que, na verdade, conheciam com exatidão cada movimento do inimigo, as forças que podia empenhar em cada batalha, seus deslocamentos que abririam fendas para o avanço aliado.
Uma vantagem cuja revelação abalaria qualquer glória. E reputação pessoal, ainda que tão grande quanto a de Churchill. Sobram exemplos neste sentido, o que falta é espaço para tantos, por interessantes que sejam.
Em 14 de novembro de 1940, a cidade inglesa de Coventry foi arrasada por um bombardeio alemão de dimensões sem precedentes. A população poderia ter sido evacuada em tempo, porque os ingleses tiveram prévia informação Ultra das ordens para o bombardeio. O primeiro-ministro Churchill decidiu-se, porém, pelo sacrifício da população, para evitar que a retirada advertisse os alemães da decifração das suas mensagens.
Decisões idênticas prevaleceram muitas outras vezes. Talvez justificáveis, todas, por seus efeitos no futuro da guerra –mas seriam assim julgadas, e julgado o político Churchill, no pós-guerra da Inglaterra tão traumatizada por seus sofrimentos?
Decididos a quebrar a Inglaterra pelo céu, para então invadi-la com a Operação Leão Marinho, os alemães e sua supremacia aérea perderam a batalha de dois anos com a RAF, cuja inferioridade material estava compensada pelas informações do Ultra aproveitadas com bravura por seus pilotos (não só ingleses, mas também provenientes de todos os países invadidos pelos alemães).
Em terra não foi diferente. O general Montgomery saiu da Batalha do Deserto, a guerra no norte da África, como um gênio da tática de blindados até hoje reconhecido. Mas sua vitória deveu-se, sobretudo, às informações do Ultra quanto aos movimentos dos tanques de Rommel e à falta de combustível e de peças de reposição dos alemães.
Ainda durante a Batalha do Deserto, o inteligente general Alexander deixou estas palavras definitivas sobre a Segunda Guerra e o Ultra: "O conhecimento, não só da precisa força e da disposição do inimigo no terreno, mas também de como, quando e onde pretende desenvolver suas operações, trouxe uma dimensão que alterou toda a concepção da guerra".
No mar, a revolução na guerra naval, feita pelos submarinos alemães, esvaziou-se com os progressos do Ultra sobre os códigos da Marinha germânica.
Na Normandia, as surpresas foram dos dois lados. E, se faltassem demonstrações anteriores, só ali o Ultra e seu caráter de "fator decisivo", na expressão de Eisenhower, estariam comprovados com fartura.
Pelos documentos apreendidos na Alemanha ocupada soube-se, por exemplo, que os alemães esperavam o desembarque aliado em Calais, ponto continental mais próximo da Inglaterra, e não bem mais a oeste, como ocorreu.
Pelos aliados, soube-se no pós-guerra que se montara um despistamento fabuloso, mantendo um contingente-fantasma, supostamente o Corpo de Exército comandado por Patton, na costa inglesa em frente de Calais.
Mas o despistamento e a surpresa foram efeitos. A causa de ambos foi o Ultra, com suas revelações preciosas.
Pelas mensagens trocadas entre os alemães, o Ultra constatou uma divergência de Rommel, recém-nomeado para o comando da Normandia e que previa ser ali a região do desembarque aliado, e, de outra parte, o Alto Comando, que opinava por Calais.
A princípio adepto de Rommel, de repente Hitler emitiu uma mensagem, captada pelo Ultra, optando por Calais e concentrando ali o 7º Exército inteiro.
Foi assim que os aliados, preparando o desembarque desde março de 1943, afinal decidiram em maio de 1944 onde o fariam –claro que onde os alemães não preparavam a resistência. E para fortalecer-lhes a previsão errada foi montado diante de Calais o arremedo de um Exército.
Além do local e da surpresa, foi o Ultra que levou à escolha da data do desembarque. Na segunda quinzena de maio, o Ultra captou a comunicação de que estavam concluídas mais 50 rampas de lançamento das V-1 alemãs, as bombas voadoras que aterrorizavam a Inglaterra. Churchill pressionou Roosevelt e Eisenhower para a realização imediata da Operação Overlord, o desembarque na Normandia, enfim marcado para 5 de junho e feito no dia 6.
E então os aliados tiveram também a sua surpresa. O Ultra captou os relatórios de efetivos alemães e de sua localização. Os aliados lançaram 1.200 navios contra 21, 950 tanques contra 127, 12 mil aviões contra 890 e 155 mil soldados contra 50 mil.
Apesar de tamanha vantagem material e do ataque na zona menos defendida, o desembarque só foi um sucesso na propaganda e na história deturpada. Os aliados não ocuparam nem um quinto do que previam para o Dia D. Levaram três semanas para alcançar esse objetivo. E, outra vez, só o fizeram graças ao Ultra.
E como os ingleses conseguiram esse "fator decisivo" que foi o Ultra? Demitido em 1938 da fábrica alemã que iniciava a produção da Enigma, quando a Gestapo descobre sua nacionalidade, um polonês volta a Varsóvia com esboços das peças e anotações sobre a máquina. Entra em contato com um agente inglês e aí começa uma aventura da inteligência.
No fundo, foi esta a questão que os ingleses se propuseram a responder: se o homem pode fazer uma máquina para criar um problema matemático, deve ser capaz de fazer outra para resolvê-lo. Já em 1939, a reposta era: "Sim, é capaz". E depois conduziu a guerra. Embora não a história.

Texto Anterior: Hoje seria impossível surpreender os alemães, diz coronel brasileiro
Próximo Texto: 1943
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.