São Paulo, domingo, 5 de junho de 1994
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Observação da luz não é mais suficiente

ERNST W. HAMBURGER
ESPECIAL PARA A FOLHA

A astronomia é ciência antiga. Desde os primórdios a humanidade observa o céu, o Sol, a Lua, as estrelas, os cometas e os planetas e especula sobre o significado de tudo isso. Os movimentos dos planetas, se eles giram em torno da Terra ou do Sol, deram lugar a apaixonados debates, a prisões e perseguições. Hoje temos um modelo sofisticado do Universo, cheio de supernovas, pulsares, estrelas de nêutrons, buracos negros, galáxias, quasares etc.
Os nossos conhecimentos sobre o cosmos provieram todos, até há pouco, da observação da luz emitida pelos astros. A maior parte das informações que temos sobre o cosmos provém, ainda hoje, das observações ópticas, antigamente a olho nu, hoje com potentes telescópios. Mas nos últimos anos vêm ganhando importância outras radiações.
Primeiramente ondas de rádio provenientes do espaço revelaram a existência de novos tipos de estrelas, os pulsares. Ainda mais importante para a cosmologia, foi descoberta uma radiação de "microondas", difusa, de baixa energia (corresponde à temperatura de 270 graus Celsius negativos, quase no zero absoluto). Acreditamos que essa radiação representa hoje a radiação de alta energia que existiu há uns 15 bilhões de anos, quando se iniciou, através do chamado grande estouro ou "Big Bang", a grande expansão do Universo que persiste até hoje. A expansão causou o resfriamento dessa radiação desde energias correspondentes a milhões de graus a quase o zero absoluto.
Os raios X também foram medidos provenientes do céu, e hoje conhecemos muitas estrelas de raios X. Diferentemente da luz e das ondas de rádio, os raios X não penetram o ar. Eles são absorvidos quando atingem o nosso planeta, já nas camadas mais altas da atmosfera. Só podem ser observados em satélites artificiais ou em balões em grandes altitudes. O mesmo vale para os "raios gama": medições feitas em satélites revelaram muitas fontes de raios gama em outros locais da nossa galáxia e fora dela.
Todas as radiações citadas –luz, rádio, microondas, raios X e raios gama– são ondas eletromagnéticas, isto é, todas consistem de campos eletromagnéticos que se propagam em linha reta e com a máxima velocidade possível, que é a velocidade da luz, e só diferem entre si por seus comprimentos de onda e pelas energias que transportam, que são mais altas para os raios gama e mais baixas para as ondas de rádio. Em geral, uma estrela emite todas ou várias dessas radiações ao mesmo tempo, isto é, uma estrela de raios X, por exemplo, pode também ser observada pela luz que emite ou pelas ondas de rádio.
No início deste século foram descobertos os "raios cósmicos", radiação não luminosa e não eletromagnética que bombardeia a Terra vinda do espaço. Os raios cósmicos consistem, em sua maioria, de prótons, que são núcleos de átomos de hidrogênio, e de outros núcleos de átomos mais pesados. São partículas de carga elétrica positiva e de alta energia, provenientes do Sol e de outras estrelas, e que percorrem longos caminhos na nossa galáxia. Diferentemente das radiações eletromagnéticas, suas trajetórias não são retas, pois são desviados pelos campos magnéticos que existem na galáxia.
Assim, quando chegam à Terra, não sabemos onde se originaram, pois percorreram um longo caminho cheio de curvas. Esses raios cósmicos também não penetram a atmosfera: provocam reações nucleares nas primeiras camadas de ar que atingem, onde produzem vários outros tipos de partículas; entre essas salientamos os "múons", partículas muito penetrantes e que podem chegar, quando de alta energia, até o solo.
Entre os raios cósmicos existe também uma fração que não tem carga elétrica, e portanto não é desviada pelos campos magnéticos interestelares. Dentre esses, os "neutrinos" são particularmente importantes. Não têm massa nem carga, e se deslocam em linha reta e velocidade igual à da luz, como as radiações eletromagnéticas.
A principal diferença entre neutrinos e radiações eletromagnéticas é que os neutrinos têm interação muito fraca com a matéria, sendo por isso capazes de atravessar grossas camadas. Por exemplo, um neutrino não só atravessa facilmente a atmosfera, como também a própria Terra: a maioria dos neutrinos que incidem sobre a Terra entram de um lado e saem do lado oposto, sem alteração.
Os neutrinos constituem uma radiação ideal para examinar o Universo, pois são capazes de atravessar as "nuvens" de matéria interestelar que não permitem a passagem da luz e das outras radiações eletromagnéticas. Essas nuvens impedem que possamos ver todo o Universo, mas são, por assim dizer, transparentes para os neutrinos. Começa a nascer assim, ao lado da astronomia óptica, da de rádio, de raios X e gama, a "astronomia de neutrinos".
Entretanto esta é uma ciência muito difícil: a mesma propriedade dos neutrinos que os torna tão interessantes, a saber, a pouca interação com a matéria e consequente alto poder de penetração, torna muito difícil detectá-los: eles atravessam livremente os detectores de radiação que se usa para outras radiações, sem deixar vestígio de sua passagem. Por essa razão os detectores para neutrinos precisam ser enormes, muito maiores do que os usados para outros fins. Outra dificuldade é que outras radiações existem em grande quantidade e podem disparar os detectores como se fossem neutrinos: é necessário ter equipamento complexo para distingui-las.
Além de tudo isso, a maioria dos neutrinos que passam ao nível do solo foi produzida na própria atmosfera por outros raios cósmicos que sofreram reações nucleares. São relativamente raros os neutrinos chamados astrofísicos, isto é, os que foram criados em outras estrelas, fora da Terra e do Sistema Solar.
Os primeiros neutrinos astrofísicos foram identificados em 1987, vindos da supernova 1987A. Havia naquela época alguns grandes detectores de partículas subterrâneos funcionando nos Estados Unidos, Europa e Japão, construídos para outras finalidades. Quando a supernova foi descoberta em um observatório no Chile, verificou-se posteriormente que um número excepcionalmente grande de neutrinos tinha sido simultaneamente detectado nesses contadores (cerca de 20 neutrinos ao todo), e só poderia ser proveniente da explosão da estrela.
Hoje estão sendo construídos alguns grandes aparelhos especialmente para detectar esses neutrinos: chamam-se telescópios de neutrinos, e vamos descrever um que está começando a ser montado em uma base aérea norte-americana localizada no pólo Sul, na Antártida. Neste local há uma camada de gelo muito puro e transparente e de vários quilômetros de espessura. Alguns dos neutrinos de alta energia que atravessam este gelo vão produzir reações nucleares com os átomos do gelo, com criação de múons de alta energia.
Os múons têm carga elétrica e altas velocidades e produzem luz ao atravessar o gelo. Essa luz será captada por válvulas fotoelétricas de alta sensibilidade que serão incrustadas no gelo. Serão dezenas de válvulas a centenas de metros de profundidade, sensíveis à luz produzida em um volume de milhares de metros cúbicos de gelo.
No Brasil há grupos de pesquisa de raios cósmicos principalmente no Rio de Janeiro, Campinas e São Paulo, mas não há ainda propostas para astronomia de neutrinos.

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