São Paulo, domingo, 5 de junho de 1994
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Anatomia do Estado

JOSIAS DE SOUZA

BRASÍLIA – Houve um dia um serviço público inofensivo no Brasil. Os barnabés eram então divididos em duas escassas e românticas categorias: havia os que trabalhavam e os que apenas depositavam paletós no espaldar das cadeiras.
Passaram-se os anos e novos tipos foram brotando das repartições, como lodo em pedra de rio. Logo notaram-se dois novos espécimes: os honestos e os quase honestos. Estes últimos entregavam-se ao hábito de receber pequenos agrados.
O Brasil grande acrescentou à fauna dos departamentos outra categoria de servidor, cada vez menos público. Surgiu a geração Itaipu, os amigos das empreiteiras, avós dos quase honestos. O romantismo deu lugar ao pragmatismo das estatais.
O progresso injetou profissionalismo na corrupção. O Brasil moderno conheceu a figura do intermediário, do lobista. Era necessário organizar a suruba. A era Collor criou PC, o lobista dos lobistas, o grande chefe. A centralização deu visibilidade ao roubo. Pela primeira vez, vimos a corrupção. Humilhados, nós a executamos em praça pública.
Súbito, surgem as últimas categorias de servidores: as viúvas e os órfãos do Estado-cadáver. Reunidos em torno do defunto, relutam em enterrá-lo. Pior: atacam os que tentam levar o funeral adiante.
Acostumado a velhas mamatas, ainda paparicado por empreiteiros sem obras, lambido por lobistas sem causa, o neofuncionalismo tenta manter de pé um Estado já putrefato, morto da própria orgia. O Estado brasileiro não morreu simplesmente. Ele cometeu suicídio.
Como que esperando por um milagre, o funcionalismo pede socorro aos últimos sobreviventes da esquerda brasileira. É preciso manter a trincheira dos monopólios.
Com o auxílio dos sindicatos de repartição pública, do sindicalismo estatal, um monstro gerado pela Constituição de 88, combate-se cada privatização. A falsa aura de civismo arrasta apoio da estudantada, idiotizada por anos de repressão do próprio Estado.
Não importa que as escolas formem imbecis; o petróleo ainda é nosso. Que se danem os hospitais descapitalizados; as estatais têm bons planos de saúde. Para o inferno com os miseráveis; o governo ainda possui motéis e campos de futebol.

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