São Paulo, terça-feira, 7 de junho de 1994
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Rio lembra obra de Joaquim Pedro

SERGIO AUGUSTO

A mostra de filmes e vídeos de Joaquim Pedro de Andrade (1932-1988), que hoje se inicia no Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio, é a mais completa possível. Falta-lhe apenas uma obra de circunstância: "Vocações Sacerdotais", sua contribuição à telessérie "Caso Verdade", que a Rede Globo não apenas desistiu de pôr no ar, 18 anos atrás, como deu sumiço às suas imagens –exceto àquelas que Walter Lima Jr. logrou garimpar para o vídeo ("Mestre Joaquim Pedro") que fez em homenagem ao cineasta.
As razões da censura? O centro das atenções em "Vocações Sacerdotais" era um bispo (d. Adriano Hypolito) cujas atividades sociais no interior fluminense a arquidiocese do Rio, as autoridades militares e, supõe-se, o dr. Roberto Marinho não viam com bons olhos.
Nas duas vezes em que se meteu com sotainas, Joaquim Pedro atraiu a ira do clero e dos carolas. A primeira batalha ele ganhou: em 1965, a censura acabou liberando "O Padre a Moça", um alegórico caso de amor cujo sacrilégio maior era a crítica que fazia à repressão religiosa. Ao Waterloo global, Joaquim Pedro não deu muita importância, indo logo à forra com aquele fescenino episódio ("Vereda Tropical") de "Contos Eróticos", em que Cláudio Cavalcanti adorava comer melancias, mas não por via oral.
Irreverente, abusado, iconoclasta –só na aparência Joaquim Pedro era uma alma fidalga, um cineasta de rendas brancas. No ensaio que há tempos lhe dedicou, o brasilianista Randal Johnson rotulou seus filmes de "desmistificadores". De fato o eram, inclusive em relação ao cinema. "Couro de Gato" desmistificou a crença de que lirismo e realismo crítico, como água e azeite, não se misturam. "Os Inconfidentes" contrariava todos os preceitos do filme histórico bem-pesante. Em "Guerra Conjugal" e "Vereda Tropical", Joaquim Pedro simplesmente desconstruiu a pornochanchada.
A exemplo de seu pai, Rodrigo Melo Franco de Andrade, zeloso curador de nosso patrimônio histórico, Joaquim Pedro esmerou-se em transpor para o cinema o que a cultura brasileira produziu de mais expressivo neste século: de Manuel Bandeira a Dalton Trevisan, passando pela sociologia de Gilberto Freyre (projetava uma adaptação livre de "Casa Grande e Senzala" quando morreu), pela poesia de Carlos Drummond de Andrade (de onde extraiu o enredo de "O Padre e a Moça") e Cecília Meireles (um dos vértices histórico-poéticos de "Os Inconfidentes"), pela prosa de Mario de Andrade e pela vida pau-brasil de Oswald de Andrade.
Se acrescentarmos o que também fez pelo nosso futebol ("Garrincha, Alegria do Povo"), pelo nosso urbanismo ("Brasília, Contradições de uma Cidade Nova") e pela memorialística de Pedro Nava ("O Tempo e a Glória"), chegaremos à conclusão de que nenhum cineasta brasileiro mirou com igual amplitude esta terra irremediavelmente carnavalesca e antropofágica. Amplitude esta que se estende aos diferentes estilos e modos de abordagem –cinema verdade, cinema direto, realismo lírico, alegoria, sátira– por ele adotados ao longo de 30 anos de carreira.
Para o crítico Ronald F. Monteiro, que há seis anos prepara um estudo sobre as adaptações literárias feitas por Joaquim Pedro, o principal mérito do cineasta de "Macunaíma" foi ter consumado uma obra de inigualável preocupação contextualizadora. Se juntássemos todos os seus filmes, teríamos um rico, complexo e didático painel de nossas folias e de nossas canalhices.
Ao pesquisar os arquivos de Joaquim Pedro, Monteiro descobriu que, além de "O Imponderável Bento" e "Casa Grande e Senzala & Cia.", o cineasta deixou quatro roteiros inéditos: uma adaptação de "Buriti" (de Guimarães Rosa), outra de "Grande Sertão: Veredas" (sem Diadorim) misturada a um conto de "Sagarana", "Vida Mansa" (baseado em uma idéia de Clarice Lispector) e "Minas de Prata" (inspirado em José de Alencar).
"Este último", revela Monteiro, "ia ser produzido por Luís Carlos Barreto, que afinal desistiu da empreitada por causa de seu custo elevadíssimo. Em seu lugar, surgiu `Guerra Conjugal', cujo estilo escrachado era o mesmo previsto para `Minas de Prata' e seria utilizado também em sua adaptação, inteiramente livre, de `Casa Grande e Senzala'."

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