São Paulo, sábado, 11 de junho de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

'Pentesiléias' evidencia lirismo de sua autora

NELSON DE SÁ
DA REPORTAGEM LOCAL

Bete Coelho conheceu dias melhores. Giulia Gam conheceu dias (muito) piores. Mas a novidade real nesta "Pentesiléias" é Daniela Thomas. Aquela mulher que vivia às voltas com martelos e operários, criando cenários para Gerald Thomas, é uma autora de teatro. Uma dramaturga, palavra muito feia. Uma poeta.
Afinal surge uma peça brasileira, no palco, com ambição de sobra. No caso, a ambição de espelhar uma mulher ou algumas mulheres ou todas as mulheres. É um melodrama, como não poderia deixar de ser. Meloso, até ridículo. Apaixonado, lacrimoso, exagerado –não poucas vezes, passa da conta. Explode em lirismo.
Para tanto, a autora passou por cima da cenógrafa. Deixou somente um palco de madeira, pouco mais. Alguma iluminação, um grande painel ao fundo, um fosso de castelo à frente. Nada que pudesse esconder o que ela trazia de novo: as imagens formadas, agora, pelas palavras –e não poucas, mas um jorro de verbo.
Mas não, não é uma peça como tantas outras, seguindo alguma norma da boa dramaturgia. É uma peça escrita para duas atrizes. Como fazia Shakespeare –sem exageros de comparação–, Daniela Thomas escreve com uma companhia à mão. Escreveu pensando em Bete Coelho, em Giulia Gam –mais um elenco de nove atores.
Para Bete Coelho, desenhou uma rainha Pentesiléia, com qualidades de Medéia. Uma mulher cuja paixão tornou-se ciúmes. E que sofre, sofre demais, melodramaticamente. "Ai de mim, que estou amando", grita em desespero patético. E ameaça, "eu vou arrancar meus olhos". Depois corta, rindo, "eu mato ela".
Para Giulia Gam, no segundo e último ato inteiro, criou uma princesa Pentesiléia. A própria amazona, que conhece, ama e combate Aquiles. A mulher cuja paixão está surgindo, desconhecida e fora de controle. "Ai de mim, ai de mim", grita –também ela– em desespero, também patética. É "desejo puro, pura carne".
Daniela Thomas vai encontrar seus personagens sem respeitar autoria e bobagens assim. Está livre disso. Também está livre de qualquer bom gosto, nas palavras. Lambuza-se com as palavras. Ela parece realmente criar em jorro. Os solilóquios são teias em que uma imagem leva para outra, para outra, sem um fim.
Exemplo, da princesa Pentesiléia, no programa da peça:
"Aquiles! Eu o vejo em toda parte, eu o sinto em todo canto! Minha alma parece afogar-se em Aquiles, dissolver-se em Aquiles... O que é isto? Eu... Eu só quero –ó, Deus– eu só quero trazê-lo para junto do meu peito, afundar sua boca no meu peito, no meu umbigo, nas minhas coxas, ah, sua língua nas minhas coxas, na minha língua... mastigar a sua língua... seu peito... seu pau... devorar seu ventre... vísceras, verme! Eu mato esse verme! Eu mato! Mãe!"
Giulia Gam começa o segundo ato –a segunda peça– muito longe disso. Parece seguir ou procurar seguir a interpretação de Bete Coelho, que carrega no sarcasmo no primeiro ato. Mas não é por aí, para Giulia Gam e sua jovem e bela princesa. Quando insiste, ela exagera nas caras e bocas, de triste lembrança.
Aos poucos, porém, vai vencendo. Quando chega ao solilóquio citado, é outra. Tem intenção nas palavras e não pose. Tem sensualidade e beleza, não mais predicados de adolescente, de alguma Julieta, mas a sensualidade e a beleza apaixonadas de Desdêmona –uma personagem mais presente agora, em Giulia Gam.
É dela a frase final, "beijar, morder, qual a diferença?", que é o mote da peça. Então a sua interpretação da princesa Pentesiléia já é plena. Está entre carinhosa e agressiva, delicada e violenta. Não à toa, chega a lembrar imagens de Joana D'Arc. Dá passagem, sem trava, à sua bela personagem.
Bete Coelho, como Pentesiléia rainha, não é a rainha do teatro, de outros momentos. Seu sarcasmo, seu diálogo incessante com o público, seus solilóquios recortados e sem desenvolvimento –nada alcança uma qualidade semelhante àquela de Leon, na última peça. A atriz parece ter cedido força à diretora.
Em cena, em não poucos instantes, Bete Coelho parecia estar dirigindo ainda. Não por passar marcação ou questionar ou incentivar atores, mas por distanciar-se da ação, para não dizer do próprio papel. É o que quase sempre acontece com atores-diretores. Mas geralmente eles interessam pouco, como atores.
Bete Coelho interessa demais, para deixar a interpretação em segundo plano. Mas a explicação, ao que parece, não está somente na dupla função. O sarcasmo e as piadas com o melodrama da personagem delatam como que uma falta de fé, um resquício de niilismo que não permite abraçar o patético da peça.
E aí não tem tragédia.
Renato Borghi, pelo contrário, abraça o ridículo do personagem com uma vontade quase juvenil. Ele faz um conselheiro da rainha, que acaba como tutor da princesa, mas enlouquecido, travestido de Pentesiléia. É dele o número escatológico que une o primeiro e o segundo atos. E outro, em que canta um bolero.
Rodrigo Matheus chega a ser engraçado com seu pseudo Jasão, machista e abobalhado, mas de Aquiles só tem os músculos. Muriel Matalon dá interpretação bem definida à amiga-amante da princesa Pentesiléia, em contraste bem-humorado, que chega a soar perfeito para a atuação mais emocionada de Giulia Gam.

Título: Pentesiléias
Autora: Daniela Thomas
Direção: Bete Coelho
Elenco: Bete Coelho, Giulia Gam, Renato Borghi, Muriel Matalon, Rodrigo Matheus, Michele Matalon, Lu Grimaldi, Cláudia Schapira, Petê Marchetti, Sílvia Mazza e Cláudia Odorissio
Quando: de quinta a sábado, às 21h; domingo, às 19h
Quanto: 8 URVs (quinta) e 10 URVs (sexta a domingo)

Texto Anterior: Texto descreve loucura e crime, venenos e morte
Próximo Texto: Sucesso de público e rombo no orçamento marcam fim do evento
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.