São Paulo, terça-feira, 14 de junho de 1994
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"O teatro resiste ao clipe", diz Mnouchkine

LÚCIA NAGIB
EM PARIS

'O teatro resiste ao clipe', diz Mnouchkine
A 'rainha' do teatro francês une cenografia do oriente com texto do ocidente
O Teatro do Sol (Théâtre du Soleil) completa 30 anos. Foi em 1964 que a trupe dirigida por Ariane Mnouchkine –filha do famoso produtor de cinema russo Alexandre Mnouchkine– deixou o gueto universitário e se profissionalizou.
Desde então, Mnouchkine, hoje chamada por alguns de "rainha" do teatro francês, vem desenvolvendo com perseverança o ambicioso projeto de englobar, em uma só linguagem, a forma cenográfica do teatro asiático (em particular indiano, japonês e chinês) com o texto dramatúrgico ocidental, desde os gregos até os modernos.
Nascido da efervescência política dos anos 60, o Teatro do Sol até hoje preserva o espírito agitador, como em "A Cidade do Perjúrio ou O Despertar das Eríneas", que estreou há poucas semanas em Paris.
Escrita por Hélène Cixous, antiga colaboradora de Mnouchkine, a peça toma por base o recente escândalo na França do sangue contaminado pelo vírus da Aids, criminosamente distribuído a hemofílicos e outros necessitados.
Em entrevista à Folha, Mnouchkine explicou os princípios básicos de seu teatro.

Folha - A sra. acha nossa época tão terrível que seus crimes fizeram despertar as Eríneas, adormecidas há 5.000 anos?
Ariane Mnouchkine - Se algum autor as tivesse chamado antes, acredito que outros acontecimentos poderiam tê-las despertado. Na nossa época, a distribuição criminosa de sangue com o vírus da Aids justifica a volta das Eríneas, que representam o desejo arcaico de vingança.
Nossa sociedade, dominada pela "realpolitik", vem fabricando seres e dirigentes capazes de provocar grandes catástrofes.
Folha - Lê-se no programa de "A Cidade do Perjúrio" que a peça não é uma fábula. Parece um texto que dá mais espaço à reflexão do que à ação.
Mnouchikine - A peça não é uma fábula porque se baseia num fato real. De resto, acho que há muita ação, porque o pensamento é uma ação. Num momento em que a reflexão se tornou rara, um pouco de reflexão parece enorme. O teatro é ainda um dos poucos redutos de resistência ao clipe.
Folha - Há um uso abundante da música, tocada mesmo antes de começar a encenação.
Mnouchkine - A música de Jean-Jacques Lemêtre, que trabalha conosco há 14 anos, funciona como a circulação sanguínea.
Se o público suporta seis horas sem se cansar é em boa parte graças à música. O teatro e a música sempre estiveram unidos na Ásia e também na tragédia grega. O teatro sem música é recente. Data, no Ocidente, do século 17.
Folha - Poderia comentar sobre o "caráter profético" de "A Cidade do Perjúrio"?
Mnouchkine - A contaminação do sangue ocorreu entre 84 e 85. A peça foi escrita entre 92 e 93, mas acabou profetizando acontecimentos posteriores.
Por volta de julho passado, criamos um personagem chamado Forzza, e o movimento político de Berlusconi de mesmo nome teve início em janeiro. Foi uma coincidência incrível.
Há também a cena, escrita no mesmo período, em que a ordem dos médicos reintegra o responsável pela distribuição do sangue contaminado. Há três meses saiu uma petição dos médicos franceses com termos idênticos aos que estão na peça. Por sorte, nosso texto já estava depositado na Sociedade dos Autores.
Folha - "A Cidade do Perjúrio" se relaciona antes de tudo com a tradição teatral ocidental –os gregos, Shakespeare. Mas em outras peças suas recorre-se também ao teatro oriental.
Mnouchkine - O teatro oriental sempre foi nosso mestre e continua sendo mesmo no presente espetáculo. Os gregos estão muito próximos do teatro oriental, portanto não sinto que esteja me distanciando de minhas fontes.
É que essas fontes estão sendo digeridas e se tornando menos formais. Na verdade, Oriente e Ocidente se completam. O Ocidente possui a dramaturgia, o texto, enquanto há muito pouco texto no teatro oriental. A ambição de nosso trabalho é unir os dois.

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