São Paulo, quarta-feira, 15 de junho de 1994
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David Mamet estréia em Londres montagem sobre traição e egoísmo

SÉRGIO MALBERGIER
DE LONDRES

"The Cryptogram", a última peça do dramaturgo americano David Mamet, 46, teve sua estréia mundial anteontem em Londres. Em pouco mais de uma hora, Mamet expõe com a crueza de sempre o egoísmo e a aridez do convívio humano.
A peça se passa em 1959, na Chicago natal do autor. O garoto John, 11, não consegue dormir na véspera da viagem para a casa de campo da família com o pai, herói da Segunda Guerra. Sua mãe, Donny, é visitada pelo melhor amigo da família, o homossexual Del.
O pai demora a chegar e Donny descobre uma carta entre a mobília. É o marido dizendo que a está abandonando. Del acaba revelando que sabia do caso extraconjugal do amigo e até tinha corroborado uma mentira dele para facilitar uma de suas viagens com a amante.
A traição –do amigo, do marido– ajuda a trazer à tona o egoísmo e agressividade da mãe, que passa a gritar com o filho sem motivo e tenta se vingar do amigo.
Apesar de mensagens filosóficas do tipo "estaríamos muito melhor se conseguíssemos falar a verdade", Mamet mantém seus personagens entre os mais comuns dos comuns, reais.
Donny, a mulher traída, se expressa da maneira mais clichê ao reclamar do sexo oposto: "Todos os homens são iguais, mentirosos, traidores". A reclamação para o filho também é a velha: "O que eu fiz para você me tratar assim?".
O plano inicial de Mamet e do diretor e constante colaborador Gregory Mosher era estrear a peça na Broadway. Londres acabou sendo escolhida por ter sido mais fácil arregimentar um elenco inglês para uma longa temporada e os custos de produção (US$ 300 mil) serem um terço dos de Nova York.
A capital inglesa assim vive uma verdadeira temporada Mamet. A polêmica "Oleanna", peça em que os conflitos homem versus mulher e politicamente corretos versus pensadores livres são levados ao limite, teve sua última apresentação na cidade no sábado.
Uma nova montagem da cáustica "Glengarry Glen Ross" (prêmio Pulitzer de 1984) estréia hoje.
O cenário de "Cryptogram" se resume a uma quase vazia sala de estar. A força da obra de Mamet se resume ao tema do texto, à revelação do egoísmo e conflito inerentes ao ser humano.
Em seu recém-lançado livro de ensaios, "A Whore's Profession", Mamet resume seu estilo ao acrônimo "kiss" ("keep it simple, stupid" –mantenha a simplicidade, imbecil).
A simplicidade reveladora fez de Mamet um dos maiores dramaturgos americanos vivos e um dos mais respeitados roteiristas e diretores de Hollywood.
Depois do sucesso de filmes como "O Veredicto" (82) e "Os Intocáveis" (87), escritos por Mamet, um roteiro seu hoje não sai por menos de US$ 1 milhão.
"Oleanna" está sendo filmada com direção do próprio Mamet. Seu moral em Hollywood é tanto que ele até se deu ao luxo de recusar estrelas para o filme, preferindo velhos parceiros de teatro.
O produtor americano Art Linson conta uma história que mostra bem a independência de Mamet. Linson o havia contratado para escrever o roteiro de "Os Intocáveis", entregue dentro do prazo.
Após encontrar problemas no primeiro tratamento do roteiro, Linson ligou para Mamet pedindo para vê-lo. Mamet, dirigindo seu primeiro filme, concordou.
Após receber Linson no set de filmagem, Mamet o expulsou logo depois, dizendo que tinha aceito apenas que ele o "visse".

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