São Paulo, domingo, 19 de junho de 1994
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O ridículo na interpretação da lei

HÉLIO BICUDO

Se todas as leis fossem absolutamente claras, nada haveria a interpretar, na forma do antigo brocardo: "in claris cessat intepretatio". Mesmo porque a lei, desde que promulgada, tem vida própria, sendo irrelevante a chamada vontade do legislador e os motivos que a determinaram.
Daí ser necessário encontrar o sentido no qual se insere, para adequá-la à justiça que é, por assim dizer, o fim último da lei.
Quando esta se afasta do conceito do justo, isto é, quando foi editada segundo reclamos ilegítimos, de duas uma: ou, mediante um esforço interpretativo consegue-se a retificação de seus rumos; ou impor-se-á a sua substituição para que o ordenamento jurídico no seu todo cumpra a sua razão de ser, na constante busca do aperfeiçoamento da justiça, dando a cada um o que é seu.
Rui Barbosa, na "Oração aos Moços", oferecida aos bacharéis da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, nos idos de 1921, já afirmava que a execução corrige ou atenua, muitas vezes, a legislação de má nota.
E trazia à colação, as palavras de São Paulo, segundo o qual boa é a lei, quando executada com retidão, isto é, boa será em havendo no executor a virtude que no legislador não havia.
Isto porque, segundo ainda o grande advogado, somente a moderação, a inteireza e a eqidade no aplicar das más leis, as poderiam, em certa medida, escoimar da impureza, dureza e maldade que encerraram.
Estas reflexões vêm na esteira de posições apressadas, inspiradas por interesses nem sempre os mais razoáveis, adoradas por juízes, juristas ou políticos a propósito do disposto no artigo 45, da lei que ordena as eleições deste ano, quando proíbe determinadas entidades e dentre elas os sindicatos, a fazer doações a partidos políticos ou candidatos ou o que lhe seja equivalente.
Interpretar esse dispositivo, divorciando-o da conjuntura é situá-lo num panorama adverso à realidade que se busca ordenar.
A finalidade desse dispositivo é a de impedir que o dinheiro público, canalizado para determinadas entidades, até por força da lei, possa ser desviado em favor de partidos políticos ou candidatos.
A lei fala em "doação", que importa na transferência de bens do doador para o donatário. Ora, quando uma dessas entidades promove uma palestra, um debate em que candidatos são convidados, ainda que essas promoções importem em custos, não se está fazendo transferência de bens ou de dinheiro.
O recinto continua sendo da entidade, assim também a aparelhagem de som e o que mais se gaste para concretizar-se o evento decorre da vontade de realizá-lo.
Nessas condições, interpretando-se os artigos 45, que proíbe doações, e o artigo 49, que dispõe sobre o controle financeiro da campanha eleitoral, ambos da atual Lei Eleitoral, buscando, dentro do sistema atual a sua finalidade, pode-se concluir pela licitude dessas atividades, encerrando-se, assim, ridículas explorações em torno do assunto, na busca de macular-se este ou aquele candidato.

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