São Paulo, segunda-feira, 20 de junho de 1994
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'Maria Moura' vence ao encarar a feiúra

ESTHER HAMBURGER
ESPECIAL PARA A FOLHA

Novelão épico, a minissérie mostra que a estética "clean", que convencionalmente marca a TV, não é necessariamente a única. Fortemente baseada na linguagem das novelas, a minissérie busca uma narrativa densa, pelo uso da paisagem, pela interpretação dos atores, especialmente coadjuvantes e figurantes. Elementos que, se aprofundados, podem renovar a estética de nossa produção televisiva.
"Maria Moura" se diferencia porque se propõe a expressar um Brasil menos glamouroso do que o que estamos acostumados a ver na TV. Seguindo a trilha de "Agosto", "A Madonna de Cedro" e da novela "Renascer", a produção da última minissérie da Globo procurou desenvolver iluminação, cenários e enquadramentos.
Pouco se vê da iluminação chapada que caracteriza a maior parte das novelas –cenário e figurino limpos, bem pintados e bem passados–, ver por exemplo "Éramos Seis" no SBT. A minissérie esbanjou cenas externas e nas internas procurou trabalhar com meia luz e sombras.
O uso da paisagem como parte intrínseca da vida, terreno a ser conquistado e ocupado, remete aos filmes de bangue-bangue que relatam a conquista do oeste americano, especialmente "Rancho Notorius" e "Johnny Guitar", ambos centrados em uma protagonista feminina, chefe forte.
A geografia árida e montanhosa exibida pela minissérie inspirada no romance de Rachel de Queiroz, não cumpre simplesmente o papel contemplativo que a exuberância de nossa paisagem vem tendo desde a novela "Pantanal" (1990, Manchete). Não estamos lá para admirar a beleza e a pujança de nossas matas "quinhentos anos depois", mas para sentir a aridez da vida no interior do nordeste escravocrata.
Maria Moura se move pela conquista da paisagem. Ela vai atrás das terras do bisavô tal qual representadas em um molde de argila. A vinheta da minissérie é a foto dos dois morros, referência da fazenda. A paisagem é bonita, mas é bruta, rude. Ela compõe a atmosfera crua e violenta que caracteriza o drama.
Assim também a direção de atores e o figurino seguem uma linha de "enfeiamento". Figurinos marrons, pretos, escuros, sujos, sem cor. Turbantes desbotados, botas de couro velho sem meia. Glória Pires e Marcos Palmeira de unhas sujas. Zezé Polessa (genial no papel de Firma) é bigoduda.
Aqui se buscou o suor do rosto pegajoso de Maria Moura ao encaminhar Cirino para a morte após uma última noite de amor. É nesse clima que as panelas de barro, os fogões a lenha, os enterros toscos, as quermesses em praça pública, as dormidas em rede, compõem o quadro de brutalidade e violência que caracteriza o mundo de Maria Moura. Pecado, incesto, estupro, tortura, assassinato, roubo, morte.
A opção por uma edição mais lenta, a valorização do movimento de câmera e o partido por um trabalho que busca expressar a rudeza em detrimento da "limpeza" e do brilho de um mundo onde o amor não é o único motor possível, não foi, no entanto, levada às últimas consequências.
Uma versão mais radical do romance teria optado por gravar no próprio nordeste, onde o barro é mais abundante e o pau a pique mais tosco, em vez de aproveitar a arquitetura pujante das cidades mineiras e de criar cenários de um estilo colonial embelezado, onde abundam luz, mezaninos, escadas...
A própria casa forte é um exemplo de construção que literalmente lembra mais um híbrido de forte medieval e casa ibérica do que uma construção agreste.
E apesar de gravada e editada como um todo antes de ir ao ar, configurando uma "obra fechada", a minissérie não consegue sustentar a complexidade estética e a dramaticidade da trama durante toda a sua extensão, tal como as novelas. E "O Memorial de Maria Moura" perdeu força quando se introduziu o romance, enfatizando os nexos melodramáticos que caracterizam especialmente a segunda metade deste épico do sertão do Brasil imperial.

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