São Paulo, quarta-feira, 22 de junho de 1994
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Begley retrata ausência de vida com poesia

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Éimprovável que o romance de Louis Begley, "O Homem que se Atrasava" (Companhia das Letras), venha a ser sucesso de público. A história não tem muito suspense, e em matéria de sexo ou intrigas no mundo dos negócios o que aparece no livro são eventos casuais –narrados de forma interessante e viva, mas com distância, com certa indiferença.
Faço uso proposital de termos como "suspense", "sexo", "intrigas": é o tipo de coisas que mais tem sobrevivido neste gênero literário em decadência, o romance. Uma boa história, alguns personagens marcantes, um espírito de narração jornalística –aparentemente, não pode mais haver romances sem isso.
O que antes era depreciado como best seller, ou seja, literatura comercial, elevou-se hoje em dia ao status de boa literatura. Está aí o caso Rubem Fonseca, que é autor elogiado e produz best sellers, sem merecer, na minha opinião, nem os elogios da crítica nem as tiragens que obtém.
A questão do best seller é complicada no Brasil. Não faz muito tempo, a editora Nova Fronteira lançava livros de alta qualidade –"Memórias de Adriano", de Marguerite Yourcenar, por exemplo– que inexplicavelmente alcançaram a lista dos mais vendidos. Isso foi há uns dez, quinze anos.
Yourcenar, ou Italo Svevo, ou Thomas Mann (autores editados pela Nova Fronteira) não correspondiam às regras do gênero best seller, aos clichês de Harold Robbins e companhia. Mesmo assim, venderam.
Como é que, de repente, os livros de auto-ajuda de Lair Ribeiro e as patacoadas de Paulo Coelho assumiram o primeiro lugar na lista dos mais vendidos?
Minha hipótese é a de que não se pode falar com certeza de um "público" consumidor de livros no Brasil. Não se trata de uma entidade estável, socialmente definida, de "leitores". E sim de correntes, de afluências sociais, que de repente se descobrem capazes de comprar livros: a "nação" dos leitores de Paulo Coelho afogou a "nação" dos leitores de García Márquez.
E há, sem dúvida, uma "nação" de leitores da Companhia das Letras. Luiz Schwarcz conseguiu um feito raro no mercado editorial, que é o de transformar uma editora numa "griffe".
Coisa que, atualmente, exige, no lado do ensaio, figuras polêmicas (Camille Paglia, Susan Sontag) e, no lado romance, figuras vendáveis (Rubem Fonseca).
Há também o lado biografia e o lado história do cotidiano.
Não faço nenhuma crítica à Companhia das Letras. Acontece que, nessas quatro vertentes –Camille Paglia, Rubem Fonseca, biografias, história– o que está em jogo são emoções fatuais. Fatos, intrigas, enredos, detalhes picantes, enfim, tudo aquilo de que o leitor sente falta hoje em dia.
É uma boa notícia, então, que a Companhia das Letras tenha editado o romance de Louis Begley. Entramos, graças a esse romance, num outro universo, talvez menos vendável, certamente mais delicado. John Updike também foi publicado pela Companhia das Letras e, mesmo no erro que foi seu romance "Brasil", percebemos a presença de um artista.
Louis Begley, que foi contemporâneo de Updike em alguma dessas prestigiosas universidades americanas –Harvard, imagino– é também um artista, e um grande artista.
Fica difícil descrever o seu romance, dizer o que tem de bom, recomendá-lo a essa figura enigmática, o consumidor de livros. Trata-se de um romance que foge (mas não muito) às sensações imediatas, emocionais, do enredo. Trata-se de um livro que foge (bastante) às sensações intelectuais da experimentação vanguardista e das paródias pós-modernas.
Sei apenas que li a história de Ben, "o homem que se atrasava", tal como seu melhor amigo, Jack, a conta. Ben nasceu na Europa central, fugiu do nazismo, não quer falar sobre o assunto e desenvolve brilhante carreira como o "judeu de plantão" num banco de investimentos em Wall Street.
O que me fascina no livro de Louis Begley, entretanto, não é o destino individual, a particularidade do protagonista. Que, aliás, fica sempre um pouco obscura, difícil de entender.
A maravilha deste romance está no "tom" da narrativa. Nada do que acontece se entende direito; mas não há enigmas a resolver. A história se desenvolve num registro especialíssimo, sutil; tão sutil que a palavra "melancólico" seria descabelada demais para descrevê-lo.
Estamos frente a um romance em estado de quietude. O tom do narrador é o de uma tristeza quieta, de uma simpatia imóvel, de uma amizade algo consternada, que se envergonha da própria consternação.
Não creio que estrago o prazer da leitura ao dizer que Ben, o advogado de sucesso que protagoniza a narrativa, tenha um fim trágico. Pois o prazer da leitura está em outro lugar. O narrador, Jack, é amigo de Ben há muito tempo. Com sedutora modéstia, encarrega-se de contar as desventuras amorosas e os sucessos profissionais do amigo. Narra, por fim, a tragédia.
O ambiente todo é de um luxo violento. Alfaiates especiais, vinhos de safra memorável, hotéis, confortos. Ao lado disso, o fracasso sentimental. Ben é o "homem que chegava tarde" –que, num adiamento funesto das próprias promessas de felicidade, hesita frente à vida.
A mulher extraordinária que é Véronique exige de Ben uma definição. Fica com ela ou não fica? Ben, que é advogado e está no Rio (descrições sutis do Rio fazem parte do romance), deixa-se levar pelas circunstâncias, pelo acaso, pelo Sol dos trópicos e implicitamente renega seu amor, preferindo uma semana em Angra dos Reis com uma prostituta loira do Rio Grande do Sul.
Trata-se, sobretudo, de um romance da solidão masculina. Cenas belíssimas de solidão aparecem no livro: um quase afogamento na praia de Copacabana, um jantar depressivo no La Coupole de Paris, um perder-se de carro na província nebulosa de Arpajon, verões mal-amados na Côte d'Azur.
No fundo, estamos diante de um problema real –a despeito das mundanidades e dos luxos do protagonista o que importa saber, afinal, é se eu ou você estamos prontos para a felicidade. Somos capazes de ser felizes? Teremos a força inata, instintiva, animal e vulgar, de agarrar pela crina ou pelo rabo a oportunidade brusca que a vida nos dá de completitude, de contentamento, de resignação talvez, mas, sempre, de simplicidade elementar e quente a cada dia?
"Par délicatesse, j'ai perdu ma vie" (por delicadeza, perdi a vida), disse Rimbaud, e o protagonista de "O Homem que se Atrasava" alude a esses versos. O bom gosto, o pudor, a alusão, o respeito, fazem o tom deste romance sofisticado. A moral da história é trágica e infeliz.
Louis Begley nos dá, neste livro, uma lição de vida e uma lição de compostura, de fineza, de "délicatesse". Ao mesmo tempo delicado e voraz, seu romance é inesquecível.
Foi todo escrito no tom particular, distante e próximo, da amizade –pois o narrador é um amigo do protagonista. Mostra aquilo que é irredutível num homem –pois o narrador não entende muito do que se passa com o protagonista. Mostra aquilo que é universal do homem. O herói do livro, conformista e magoado, comodista e culpado, atrasa-se diante dos chamados selvagens da vida; é um esquivo, um triste.
Passou, com efeito, o tempo em que o romance retratava um personagem triunfante e forte. A ironia moderna toma a forma de uma compaixão distanciada. E a ausência de vida tem, neste livro, um papel poético, assustador e elegante.

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