São Paulo, quarta-feira, 22 de junho de 1994
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Lacuna da lei ou do direito?

SILVIA PIMENTEL ; THOMAZ R. GOLLOP

SILVIA PIMENTEL e THOMAZ R. GOLLOP
A questão do aborto por anomalia fetal grave e incurável reveste-se de aspectos sociais, médicos, éticos e legais.
A partir de uma perspectiva médica, devemos considerar que as gestações com risco genético possuem atualmente um arsenal de procedimentos diagnósticos e algumas vezes até terapêuticos que permitem identificar os fetos comprometidos por afecções graves.
Quando for possível tratarmos o feto intra-útero (no caso de mulheres RH negativas sensibilizadas, por exemplo, através de transfusões intra-uterinas) não é necessário discutirmos a questão de interrupção da gravidez.
Existem, entretanto, situações nas quais dispomos apenas do diagnóstico e as perspectivas da criança, uma vez nascida, são muito limitadas e as possibilidades de sua perfeita integração social e reabilitação são reduzidas.
Nesses casos, nos parece lícito permitir ao casal uma opção pela interrupção da gestação com adequado atendimento médico.
A partir de uma perspectiva jurídica e concebendo-se o direito apenas enquanto um conjunto de normas positivadas pelo Estado, é inegável que sempre há uma certa defasagem entre o ritmo de formalização do direito e o ritmo da dinâmica de mudança social.
Em períodos de maiores transformações, como o das últimas décadas, em que as mudanças tecnológicas se apresentam em tão grande número e sobre realidades as mais diversas, o problema da incompletude legal se torna crucial e mesmo, como no caso presente, dramático.
A questão das lacunas, há muito, tem sido objeto de ricas e interessantes elaborações doutrinárias, por parte da ciência jurídica visando sua superação.
Vale considerarmos "ainda" outros aspectos. Todos os países desenvolvidos oferecem, à custa do Estado, aos casais cujas gestações possuem risco genético, meios de diagnóstico genético no pré-natal.
Feito o diagnóstico de uma anomalia grave, poderá o casal optar por ter o filho e tratá-lo ou, ao contrário, optar pelo aborto, que será assistido pelo sistema de saúde.
No Brasil, a equação é duplamente perversa. Não dispomos de meios suficientes para atender a população de gestantes com risco genético e, ao nascerem as crianças como anomalias genéticas, encontram um Estado omisso no seu atendimento.
Parece-nos importante reconhecer que a última reformulação do Código Penal deu-se em 1940, época na qual não se cogitava realizar diagnósticos intra-uterinos.
A lei tornou-se, portanto, anacrônica. Não se trata de aborto que fere o direito, enquanto Justiça, mas apenas de insuficiência da norma positiva.
Importa salientar que o anteprojeto do Código Penal, na sua parte especial de julho de 1984, previa um adendo ao artigo 128 que trata da exclusão de ilicitude nos casos de interrupção de gravidez.
Com a rubrica de "aborto piedoso", estabelecia: "Não constitui crime o aborto praticado por médico se há fundada probabilidade, atestada por outro médico, de o nascituro apresentar graves e irreversíveis anomalias físicas ou mentais".
Consta dos mandamentos do advogado, redigidos por Eduardo Couture: "Teu dever é lutar pelo direito, mas, no dia em que encontrares o direito em conflito com a Justiça, luta pela Justiça".
Vale ainda ressaltar que grupos atuantes de medicina fetal no Brasil associaram-se aos juristas do país em situações de diagnóstico de anomalias fetais graves e obtiveram, a partir de 1992, alvarás concedendo autorização para a interrupção das respectivas gestações.
Devemos citar, por questão de justiça e homenagem, os alvarás do dr. Miguel Kfoury Neto, de Londrina, em 1992, o do dr. Geraldo Francisco Pinheiro Franco, de São Paulo, em 1993, e o do dr. Luis Fernando Camargo de Barros Vidal, de Santo André, em 1994.
Poderíamos considerar que a posição do dr. Aníbal Faúndes, à qual nos associamos, entra em um contexto ético. Por sua vez, a ética não está atrasada em relação à ciência, mas os cientistas tentam praticá-la dentro de uma realidade na qual ainda não há leis estabelecidas ou reformuladas!
Importa finalizar salientando que lacuna da lei não significa lacuna do direito. Para tanto devemo-nos valer seja dos princípios gerais do direito, muitos já expressos em nossa Constituição, seja da doutrina jurídica, seja da ética e da justiça, valores que a todos nos deve conduzir, em cada uma de nossas ações.
O inciso 3 do artigo 5 da Constituição brasileira estabelece: "ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano".
Será útil pensarmos se, diante do infortúnio de um diagnóstico de anomalia fetal grave e irreversível, é humano e éticamente justificável deixar o casal sem opção e sem atendimento médico adequado por conta de uma lei superada.

SILVIA PIMENTEL, 54, é professora de filosofia do direito da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), membro do conselho diretor da Comissão de Cidadania e Reprodução e do Comitê Latino-Americano Para a Defesa dos Direitos das Mulheres (Cladem).

THOMAZ RAFAEL GOLLOP, 46, é professor de genética médica do Instituto de Medicina Legal da USP (Universidade de São Paulo) e membro do conselho diretor da Comissão de Cidadania e Reprodução.

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