São Paulo, quinta-feira, 23 de junho de 1994
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Aborto, eutanásia e tabaco

HÉLIO SCHWARTSMAN

SÃO PAULO – O mundo tem coisas estranhas. O Brasil, a partir de uma corajosa entrevista concedida por um médico que admite fazer abortos "fora da lei", mas dentro da ética, começa a debater sua anacrônica legislação. É como se, até a entrevista, o problema jamais tivesse existido.
E por trás de uma bizantina discussão sobre quando começa a vida, esconde-se a hipocrisia de uma sociedade que permite que 174 de cada mil crianças nascidas vivas no interior das Alagoas pereçam antes de completar um ano, índice comparável ao de Níger, o campeão mundial da mortalidade infantil (191 por mil).
E é óbvio que a vida e a sua proteção começam quando o direito positivo define que começam, o resto é metafísica (no mau sentido). Não custa lembrar que a maioria dos países dignos do adjetivo "civilizado" permitem que a mulher decida se quer ou não ter o filho.
Enquanto o Brasil começa a engatinhar numa discussão que deveria já há muito estar resolvida, a civilizada Holanda apresentou ao mundo um tema análogo. A Suprema Corte neerlandesa, numa demonstração de bom senso, decidiu não punir um médico que auxiliou uma mulher saudável a suicidar-se.
Ora, nem mesmo o Código Penal brasileiro, datado de 1940, ousa proibir o suicídio, um ato que, em última instância, é uma decisão que cada ser humano carrega irremediavelmente consigo. E se alguém deseja renunciar à vida, por que não fazê-lo com a devida assistência profissional, de modo indolor e eficiente? A etimologia da tão controvertida palavra "eutanásia" é eloquente: "boa morte".
E já que o tema aqui é o das liberdades individuais e da luta do bom senso contra a hipocrisia, é bom lembrar que os EUA poderão em breve banir o fumo do país. Seria uma decisão bastante curiosa quando se lembra que os EUA são o país que "inventou" tanto o fumo quanto as liberdades individuais.
Não deve existir hoje um ser humano maior e civilmente responsável sobre a terra que não saiba que fumar faz mal à saúde. Se ainda assim decide acender um cigarro, é problema seu. O mesmo vale para a maconha, a heroína etc.
De resto, parafraseando Molière, "o que quer que possam dizer Aristóteles e toda a filosofia (e também a medicina), não há nada como o tabaco, é a paixão da gente honesta".

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