São Paulo, sexta-feira, 24 de junho de 1994
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'Waterworks' estabelece conexões entre o sacrifício e a imortalidade

SIMON SCHAMA
DO "THE NEW YORK TIMES BOOK REVIEW"

"O fato de que Henry Armstrong foi queimado vivo não parecia provar, para si mesmo, que ele estava morto: ele sempre foi um sujeito duro de convencer". Assim começa "One Summer Night", um dos mais escabrosos contos de Ambrose Bierce: duas páginas sobre uma exumação, do ponto de vista de quem está no caixão.
Uma exumação tem também um importante papel no novo romance de E.L. Doctorow, "The Waterworks". Mas o que o sr. Doctorow na verdade exuma são os resíduos do gênero de ficção de mistério do século 19, originado por Edgar Alan Poe e ricamente desenvolvido por Bierce e Wilkie Collins.
Mas isso não quer dizer que "The Waterworks" é um mero romance gótico. Como Doctorow faz seu narrador, um editor chamado McIlvaine, dizer insistentemente, esta não é uma história sobre fantasmas.
Embora sejam usados alguns esquemas próprios ao gênero -um corpo que se recusa a permanecer morto, um incrédulo contador de histórias e um lacônico e socialmente desajeitado policial-, esse livro é realmente concebido para ser um verdadeiro peso-pesado no gênero romance de idéias, uma alegoria da vitalidade, mortalidade e a manipulação da natureza.
Quase todos os romances de E.L. Doctorow têm sido, ao menos em algum grau, documentos sobre a história da cidade de Nova York, com uma riqueza na descrição de sua paisagem cultural, da virada do século de New Rochelle e Manhattan em "Ragtime" à sua infância no bairro judeu do Bronx na década de 30 no romance "A Grande Feira". Mas em "The Waterworks" não é mais o lugar onde se passa a ação: é a ação o personagem principal.
Doctorow tem apanhado essa visão da necrópole sob as luzes de gás, onde a distinção entre os vivos e os mortos é obscurecida pelos vários tipos de almas. Mas essa também é a Nova York dos mutilados.
Em um dos episódios do romance, o artista Harry Wheelwright, possivelmente o mais memorável dos personagens da história, é visto pintando o torso de um veterano da Guerra Civil. Horrivelmente deformado pelas feridas das batalhas. E de uma forma apropriada, Doctorow dá a seu narrador McIlvaine uma espécie de mutilação: um defeito de fala.
A sua escolha consciente de um estilo "manqué" provavelmente não agradará aqueles que têm no prazer o maior princípio para se ler Doctorow. Mas isso faz parte de suas corajosas invenções na forma de sua literatura.
"The Waterworks" é, sem dúvida, muito mais do que o resultado de sua própria ingenuidade. Para todos que procuram as raízes da cidade, a história é levada numa atmosfera do mito.
A própria literatura se dissolve dentro de um banho de memória, quando notamos que a biblioteca pública de Nova York já foi um dia o reservatório de Croton Holding. Mas essa sua formidável erudição sobre a cidade não transparece sobre a narrativa.
McIlvaine, o narrador desse romance, é perseguido pela memória, por ter testemunhado o afogamento de uma criança naquela parte da cidade.
Mr. Doctorow conhece as conexões entre o sacrifício e a imortalidade. Como sangue e água foram incorporados à nossa cultura.
Para as águas que lavam a narrativa, tudo caminha para uma grande confluência, onde os temas mais profundos permeiam a imaginação poética.

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