São Paulo, segunda-feira, 27 de junho de 1994
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Cidade é última fronteira da Guerra Fria

GEORGINA HIGUERAS
DO "EL PAÍS", EM PANMUNJOM

O tempo não passou por Panmunjom. Aqui dois mundos antagônicos –o comunista, em via de extinção, e o capitalista, em pleno auge– continuam arreganhando os dentes um para o outro todas as manhãs e recorrendo à guerra verbal para descarregarem seu ódio mútuo, como se ainda vivêssemos a Guerra Fria.
Em Panmunjom, a impressão que se tem é que ninguém ficou sabendo da queda do Muro de Berlim, em 1989, ou que a União Soviética já não existe mais.
Com seus uniformes verdes quase iguais aos do Exército Popular de Libertação da China, os soldados norte-coreanos observam centenas de turistas, diplomatas e jornalistas fotogrando-os com a mesma curiosidade que se fotografa uma relíquia ou um animal selvagem numa jaula invisível.
Uma linha de cimento de apenas 5 cm de altura marca a barreira intransponível, que nestas quatro longas décadas só foi atravessada uma vez, por um par de insensatos que pagaram caro por sua ousadia.
Deste lado, o soldado norte-americano que faz as vezes de guia parece haver aprendido seu papel numa escola de Rambos.
Convencido de que tem por missão salvar a Coréia e frear o avanço pelo mundo das malignas forças comunistas, o militar grita de vez em quando, aos visitantes, que eles são livres para lhe fazer perguntas; livres para filmar onde e quando ele disser; livres para passear pelos lugares permitidos, e livres para comer num dos dois restaurantes.
A mensagem, em suma, fica clara: deste lado, a liberdade; do outro, o endoutrinamento.
Panmunjom reflete ao extremo do ridículo os horrores da Guerra Fria. Os 240 camponeses que cultivam arroz na parte sul-coreana vivem na chamada "Freetown", Cidade da Liberdade.
As construções que se avistam ao longe, em terras norte-coreanas onde também se planta arroz, fazem parte da chamada "Propaganda Village", ou seja Aldeia da Propaganda Política.
Os pavilhões em que se celebram as conversações patrocinadas pela ONU e as negociações intercoreanas também estão divididos em partes iguais. A fronteira passa pela metade exata da mesa de negociações.
No interior dos pavilhões, os visitantes se sentem mais protegidos e mais fortes, e em fila indiana se aventuram a cruzar para o norte, para que possam dizer que estiveram "do outro lado", enquanto soldados norte-coreanos os observam pelas janelas.
O governo de Seul, que declarou 1994 o Ano Para se Visitar a Coréia, decidiu que Panmunjom é uma de suas atrações turísticas, e as tropas norte-americanas que, ao lado das sul-coreanas, são guardiãs da zona, afirmam estarem "encantadas" com a medida.
Cem mil pessoas visitaram Panmunjom no ano passado, e em 1995 a previsão é que essa cifra dobre. Já foi aprovada a construção de outro restaurante e outra sala de recepção.
Esta pequena aldeia insignificante começou a adquirir importância durante a guerra da Coréia (1950-1953).
Em outubro de 1951 tiveram início em Panmunjom as conversações para pôr fim a uma disputa sangrenta que custou a vida de mais de dois milhões de pessoas e que só terminaria dois anos mais tarde, depois de 1.076 reuniões terem sido realizadas neste povoado.
O armistício assinado entre os EUA e a Coréia do Norte fixava uma estreita faixa desmilitarizada ao longo do paralelo 38, a fronteira que divide a península coreana. Numa ponta dessa faixa se encontra Panmunjom, a apenas 70 km de Seul e 180 km de Pyongyang.
Falar de desmilitarização no paralelo 38 é eufemismo. A maior concentração de tropas no mundo se encontra exatamente nesta zona, olhando-se umas às outras cara a cara.
O Exército norte-coreano tem um efetivo de 1,1 milhão de soldados, dos quais 65% estão colocados na área contígua à linha do armistício.
O Exército sul-coreano conta com 650 mil homens, além dos 36 mil soldados norte-americanos estacionados nesse país.
"As forças convencionais norte-coreanas são uma vez e meia superiores às nossas. Apesar disso, não poderão avançar através da zona desmilitarizada. Se iniciarem uma guerra de agressão, será uma guerra de guerrilhas", afirma Song Young Sun, pesquisadora do Instituto de Análises de Defesa.
Essa instituição governamental trabalha em estreita cooperação com as Forças Armadas e com os serviços nacionais de espionagem.
Ela tem como missão assessorar o Exército em estratégias militares e avisá-lo dos movimentos políticos do outro lado da linha de demarcação que possam afetar seu trabalho de defesa nacional.
As Forças Armadas de Seul são as únicas no mundo que têm um comando conjunto com as dos EUA. Essa falta de autonomia é contestada com afinco cada vez maior pela juventude universitária, mas o establishment militar assegura que é "a melhor forma de defender" o país.
Song assegura que a falta de iniciativa de que sofre o Exército sul-coreano, ao precisar consultar os Estados Unidos antes de qualquer movimento, "não incomoda, já que o Exército sul-coreano está plenamente consciente do enorme valor de dissuasão que representam as tropas norte-americanas, diante da Coréia do Norte".
Apesar disso, um certo mal-estar começa a surgir em alguns setores militares devido à disputa entre EUA e Coréia do Norte sobre se este país já possui material radioativo suficiente para construir uma ou duas bombas nucleares.
"É uma questão entre Washington e Pyongyang, na qual a Coréia do Sul está irremediavelmente no meio", afirma um oficial.
Ele acrescenta: "Se Pyongyang oferecer uma inspeção completa das instalações nucleares e um tratado de paz em troca da saída das tropas norte-americanas da Coréia do Sul, acho que para nós seria aceitável. O problema é saber se os EUA estariam dispostos a abandonar nosso território, que é um importante posto de observação da China, da Rússia e do Japão".
Manter as tropas norte-americanas em seu solo custa à Coréia do Sul US$ 1,07 bilhão anuais. O país gasta 4% de seu Produto Interno Bruto com a defesa. Os gastos anuais chegam a US$ 7,6 bilhões.
Na Coréia do Sul ninguém quer falar em guerra. As pessoas convivem com esse fantasma desde o fim da guerra anterior, já que não existe sequer um tratado de paz.
Atualmente, no dia 15 de cada mês, são realizados em Seul exercícios de salvamento civil, e durante uma hora o denso trânsito da capital é paralisado.
A cidade, com 10 milhões de habitantes e próximia à fronteira, seria a mais afetada em caso de ataque do norte.
Com um crescimento econômico espetacular nos últimos 15 anos, os sul-coreanos parecem estar preocupados apenas em não perder competitividade no mercado internacional.
A década de 90 começou com uma alta significativa dos salários, mas isso levou os preços a subir em relação aos demais tigres do sudeste asiático.
No Norte, os chavões belicistas estão nos lábios de qualquer funcionário. O "orgulho nacional", como dizem, é a única coisa que lhes resta. O país está afundado numa crise econômica aguda.
Sem o petróleo que a extinta União Soviética lhes fornecia a preços baixos, sem os mercados dos extintos regimes comunistas da Europa Oriental e com três colheitas más pelas costas, o governo de Pyongyang tem poucas possibilidades de sobreviver.
"Se os Estados Unidos pensam que com pressão e coerção conseguirão colocar de joelhos o nosso povo, para quem a independência é a vida, estão enganados. Se teimarem em pressionar nossa República, nos veremos obrigados a tomar uma medida correspondente de autodefesa para salvaguardar a dignidade e a soberania da nação", declarou o presidente Kim Il-sung em maio passado.
"Estamos prontos tanto para as conversações quanto para a guerra. Mas se houver uma guerra, será termonuclear e definitiva", afirma o representante da Coréia do Norte na Espanha, Li Jong Gun.

Tradução de Clara Allain

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