São Paulo, quarta-feira, 29 de junho de 1994
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Pobreza absoluta

ANTONIO DELFIM NETO

Antonio Delfim Netto
Temos, com certa frequência, procurado mostrar que existe um excessivo pessimismo sobre a situação brasileira, e que o seu setor privado está melhor do que parece. O movimento de terrorismo cultural revelado na expressão "década perdida" acentuou-se depois da Constituição Cidadã, a última filha legítima do estelionato eleitoral construído em torno do Plano Cruzado em 1986.
É evidente que se trata de uma Constituição inspirada por Nemesis, a deusa grega da vingança e da redistribuição, que pune nos descendentes os crimes dos progenitores!
O que não soubemos, foi construir instituições inteligentes e funcionais, capazes de produzir maiorias estáveis, o que torna difícil a administração do país.
Mas a despeito de tudo isso, é tolice insistir na idéia de que perdemos uma década. Como temos procurado mostrar, nossos problemas foram também os problemas mundiais (duas crises de petróleo, com o país produzindo 10% do seu consumo, eliminação dos fluxos de capitais, taxas de juros internacionais astronômicas, queda das relações de troca etc.). E os resultados brasileiros se comparam favoravelmente –pelo menos até 1984– com o de nossos parceiros latino-americanos.
A resposta invariável a tais comentários é que talvez a economia não tenha estado tão ruim, mas que houve um desastre nos índices sociais. É certo que houve uma enorme urbanização, que houve uma enorme concentração de renda (produzida pelas flutuações da taxa de inflação) e que a pobreza visível das grandes cidades agride nossos sentimentos de solidariedade e justiça. Mas será correto dizer que não houve nenhum progresso humano na chamada "década perdida"?
É pelo menos duvidoso.
Dois professores da USP –Roberto F. Iunes e Carlos A. Monteiro– produziram um interessante e desapaixonado estudo (coisa rara!), "Razões para a Melhoria do Estado Nutricional das Crianças Brasileiras nas Décadas de 70 e 80", publicado pela Unicef em 1993, no qual se mostra um quadro realista da situação.
O trabalho chama a atenção para o fato de que provavelmente a urbanização reduziu a taxa de fecundidade da população, o que induziu uma redução da taxa de crescimento populacional de 2,5%, na década 1970-80, para 1,9% na década 1980-90. Mostra, depois, que os déficits ponderais severos diminuíram em cerca de 60% entre 1975 e 1989, o que certamente não é desprezível.
Os dados revelam, também, que a "diferença na média da estatura das crianças brasileiras com relação ao padrão de referência decresceu à metade entre as duas datas: de cerca de sete centímetros em 1975 para cerca de 3,5 centímetros em 1989. A mortalidade infantil caiu de 98/1.000 em 1977 para 45/1.000 em 1989, no Brasil. E em São Paulo ela reduziu-se de 84/1.000 em 1970 para 31/1.000 em 1989. A percentagem de pessoas vivendo abaixo da linha de pobreza absoluta caiu, no Brasil, de 59%, em 1970, para 17%, em 1989.
Talvez seja pouco, mas não revela uma "década perdida". Trata-se de um trabalho importante e que deveria ser amplamente divulgado, para servir como antídoto contra "pobreza intelectual absoluta" que ataca alguns de nossos engajados historiadores. Ah! Esses doutores em filosofia doméstica que insistem no argumento "ad hominem" em lugar de espremerem as estatísticas para que confessem a verdade!
Antonio Delfim Netto escreve às quartas-feiras nesta coluna.

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