São Paulo, domingo, 3 de julho de 1994
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As batalhas do real

ANTONIO KANDIR

Depois de uma difícil travessia, chegamos ao real. Temos uma chance efetiva de estabilizar em definitivo a economia brasileira. Não por razões subjetivas. Mas por força de transformações estruturais ocorridas na economia e na sociedade brasileiras nos últimos anos. Há, pois, um vetor poderoso a favor da estabilização. Não por outra razão, o plano já provoca reorientação de posições na guerra eleitoral.
Justamente porque a oportunidade é real, é hora de enxergar os desafios com os pés fincados no chão. E eles não são poucos. O maior de todos eles, não custa registrar, é criar as condições políticas necessárias às reformas que permitam o ajuste fiscal estrutural e a gestão autônoma da moeda. Mas há desafios imediatos. E sem vencê-los, não há como vencer o desafio principal.
Os desafios de curto prazo, inerentes a todo plano de estabilização, tornam-se maiores pelo fato de o real chegar a apenas 30 dias do início do horário eleitoral gratuito. Nos próximos 30 a 60 dias, ainda que de modo decrescente, não faltarão armas aos adversários do plano para bombardeá-lo em cadeia nacional de rádio e tv.
A começar pelo fato de que os índices de preço só passarão a falar exatamente a mesma língua no início de setembro. Até lá, os índices estarão ainda captando resíduos estatísticos da inflação em cruzeiros reais. Existirá um descolamento entre o comportamento efetivo dos preços no presente e o comportamento espelhado pelos índices, o que irá prestar-se a toda sorte de manobras diversionistas, afetando a percepção da população quanto ao sucesso do plano.
Some-se à divulgação de índices contaminados pela inflação em cruzeiros reais o sentimento de pobreza que, nos meses iniciais do real, com o fim da ilusão monetária, irá previsivelmente apossar-se dos setores da classe média que conseguiam proteger-se da inflação.
Para que nesses setores, com alta capacidade de vocalizar insatisfações, verifique-se uma recuperação perceptível do poder de compra, terá de se esperar o decantamento da espuma inflacionária levantada ao longo de junho. Com toda probabilidade, é verdade, os preços irão reacomodar-se, já que a economia está aberta às importações e a política cambial, com reservas abudantes, irá favorecer a disciplina dos preços internos.
Se a decantação for rápida, o sentimento de perda não será suficiente para criar insatisfação importante na opinião pública e provocar forte conflito distributivo. Mas também aqui, há que se notar os perigos à frente. São dois os principais: o nível das taxas de juros e as disputas judiciais referidas à conversão de contratos.
Taxas de juros reais elevadas são fator de aguçamento do conflito distributivo. Mantê-las elevadas além do tempo estritamente necessário, numa conjuntura política sensível, com sentimento de empobrecimento das classes médias e percepção incerta quanto à queda da inflação, é uma temeridade.
Outra cartada decisiva do plano será jogada no plano jurídico. Decisões judiciais que provoquem forte deslocamento de renda na conversão de contratos (mensalidades, aluguéis e aplicações financeiras) irão alimentar o conflito distributivo e poderão causar danos ao plano.
Não tenhamos, portanto, ilusões. Não há céu de brigadeiro pela frente. Razão para pessimismo? De modo algum. As condições estruturais conspiram a favor do plano e até aqui o governo tem sabido valer-se disso com competência. Os obstáculos de curto prazo são, todos eles, superáveis. Tão mais facilmente superáveis se, nos próximos 60 dias, desenhar-se no horizonte perspectiva firme de sustentação do plano a longo prazo.
Sustentação que se prende à afirmação política e social do compromisso com um impulso consistente de reformas estruturais, ainda no primeiro semestre de 95. É desse norte que a nova moeda precisa para atravessar com êxito a turbulência dos próximos dois meses.

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