São Paulo, domingo, 10 de julho de 1994
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Futebol contém um ideal do direito

WALTER CENEVIVA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

A idéia para escrever este comentário começou a ser desenvolvida no último domingo, quando assisti Suécia x Arábia Saudita. Eram duas equipes cujos componentes tinham idioma, religião, origem, cultura, hábito e geografia muito diversos. Do público que os via, no estádio e no mundo (centenas de milhares de pessoas), nem falar. O árbitro, para completar, era brasileiro, acrescentando um pormenor na babel.
Todavia, todos se entendiam e entendiam o que se passava, compreendendo mesmo os gestos, até mais além das palavras. Aí está a idéia do comentário: a linguagem do direito, num país em evolução como o nosso, atrapalha a compreensão. Instável, confusa, prolixa, contraditória, é quase ininteligível para a maior parte dos cidadãos. Sua aplicação equilibrada fica difícil, criando complicações que agravam as tensões sociais e incentivam o desrespeito.
Alf Ross, um verdadeiro craque escandinavo da filosofia jurídica moderna, examinou a linguagem e as investigações possíveis sobre o direito, em estudo que ajuda a avaliar os danos causados pela falta de estabilidade e harmonia na ordem jurídica brasileira. Danos inexistentes na persistência e na fácil compreensão das regras futebolísticas, embora estas sofram dos males irracionais das grandes paixões.
Ross sistematiza –em uma de suas lições– os tipos possíveis de manifestação linguística. Distingue três tipos: a manifestação de asserção, na qual se comunica um fato, que tem, assim um significado representativo; a manifestação exclamativa, desprovida de significado representativo, na qual inexiste a pretensão de exercer influência e, por derradeiro, a manifestação diretiva, que embora também não tenha caráter representativo, destina-se a exercer influência. As leis, enquanto regras jurídicas expressas (são criações linguísticas nascidas da necessidade de ordem social), se integram neste último grupo: são manifestações diretivas.
Depois de discutir as alternativas das investigações possíveis sobre o conceito e a natureza do direito, Ross acentua a interação do direito e da sociedade, para destacar a importância de investigar os modernos fatores sociais que interferem no conteúdo variável do direito, diante da crescente dependência deste em relação à economia e à consciência jurídica de todo o povo.
As leis em geral não se destinam a comunicar verdades teóricas, mas a dirigir comportamentos humanos, para que atuem de forma socialmente desejada. A clareza e a integração numa estrutura estável são essenciais. A lei nem é verdadeira, nem falsa, mas dá a direção. Sendo manifestação diretiva, há de ser compreensível pela maioria, aplicável com rapidez. Como no futebol.
Na relação entre o direito vivo, tal qual como se desenvolve na comunidade dos homens e das mulheres e o direito teórico ou dos livros, distante da realidade, a lei não sobrevive se ignora ou desrespeita seus efeitos sociais. No futebol, como na vida, quem não atentar para as forças que motivam a aplicação do direito correrá o risco de não realizar a finalidade da norma jurídica e da lei.
Agora explico o porque desta mistura de futebol, filosofia e linguística. Para apoiar o Plano Real o jurista deve mergulhar no emaranhado confuso da medida provisória que criou a nova moeda, sem ligar para os enigmas sintáticos de seus criadores. Intelectuais de alto bordo, eles ignoram que o futebol contém um difícil ideal jurídico: a clareza.

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