São Paulo, domingo, 10 de julho de 1994
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Conrad e a iniciação no mar

A navegação precisa de Conrad

VIVIANA BOSI CONCAGH
ESPECIAL PARA A FOLHA

A tradução de duas novelas de Joseph Conrad (1857-1924), reunidas em esguio volume, prenuncia uma auspiciosa continuidade. O horizonte de ambas é o mar. Os narradores são viajantes meditativos, para quem cada ação vem acompanhada de um olhar interno e caracterizações minuciosas.
Mais do que espaço físico, o oceano representa a própria vida materializada: lugar de embates e oscilações onde o caráter do homem se afirma. As águas são inescrutáveis como o destino, e seus movimentos inesperados estão além do controle da tripulação.
A vida, assim, torna-se um ser visível e palpável, a conduzir as personagens em ondulações por vezes traiçoeiras. Os homens do mar esfalfam-se com determinação e astúcia para alcançarem modestas metas, que custam toda a energia de um desafio mortal:
"Meus amigos, vocês sabem que há viagens que parecem encomendadas para a ilustração da vida, que podem tornar-se um símbolo da existência. Você luta, trabalha, sua, quase se mata tentando realizar algo –e não consegue. Você simplesmente não pode fazer nada, nem grande nem pequeno –nada no mundo– nem mesmo casar com uma velha donzela, ou levar uma maldita carga de 600 toneladas de carvão a seu porto de destino", reflete Marlow, o protagonista de "Mocidade", que Joseph Conrad também introduz em outros contos como um alter ego. Nesta viagem emblemática, dá-se sua passagem para a maturidade.
Esta primeira novela é cheia de sutis ironias: uma tarefa a cumprir e empecilhos de toda sorte. "Vencer ou morrer" é o mote da embarcação velhusca que leva Marlow ao Oriente com uma carga de carvão. Uma questão de força moral cruzar os mares, sem soçobrar no combate. Um jovem determinado e ávido de mundo em um navio decadente, comandado por dois velhos experientes, mas já meio lunáticos.
No meio da água, o navio se incendeia, no mais absurdo paradoxo. Marlow não desiste de chegar ao sonhado Oriente, mas quando finalmente desembarca como náufrago, após sofrer inúmeros revezes, adormece exausto na praia, e então, inesperada inversão!, não é ele que olha o Oriente, mas é este que o contempla em silêncio.
A segunda novela, "O Parceiro Secreto", publicada 12 anos após a primeira, mantém com esta um vínculo sutil, para além da mesma locação marítima e da rota por regiões exóticas: a questão da honra, central em toda obra conradiana. Como pode o homem tentar algo grandioso, ainda que suas decisões lhe custem o desafio das leis sociais e das forças da natureza?
"O Parceiro Secreto" contrapõe a sociedade oficial e suas leis ao indivíduo perseguido. Um jovem capitão inseguro, em seu primeiro comando, sem conhecer bem seu navio nem a si mesmo, resolve esconder em sua cabine um fugitivo que havia matado um homem em outro navio. Há crescente identificação entre eles. O capitão sente-se na pele do outro, seu duplo.
Dividido entre o eu público e o secreto, comporta-se de maneira meio ausente. A tripulação cochicha pelas suas costas, comentando seu estranho comportamento. Por fim, o capitão ajuda o acossado a escapulir. Isto lhe traz uma nova confiança em si mesmo pois afrontou leis preconcebidas para assumir sua própria autoridade.
O espírito de Conrad é afim aos ideais heróicos de sua pátria de eleição, a Inglaterra (temperado ao fundo pelo nacionalismo polonês herdado da infância), país que ele compara a um imponente navio "que guarda memórias gloriosas e desmemórias vis, virtudes ignóbeis e transgressões esplêndidas".
No entanto, escapa, por conta de superior sensibilidade, ao colonialismo arrogante, pois mira o mundo com os olhos do jovem aventureiro, prontos para o entusiasmo assombrado e livres do cálculo mercantilista. Nada ingênuo, porém, este olhar, que compreende, mas não compartilha a cupidez obtusa do explorador.
Nos dois contos, o mar confere ao homem a "chance de medir sua força", lugar de ousadia em que se é chamado a demonstrar-se "fiel àquela concepção ideal da própria personalidade que cada homem estabelece para si mesmo secretamente". Tal é a tarefa mais alta que a personagem da narrativa realista romântica de Conrad almeja: como para Spinoza, a virtude é um penoso amor a si mesmo.

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