São Paulo, domingo, 10 de julho de 1994
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GUERRA E PAZ

SÉRGIO DÁVILA

Primeira efugiada bósnia a se refugiar no Brasil, Tatjana Grubic perdeu pai e mãe para os sérvios. No Rio de Janeiro vive com o marido e a filha dos US$ 200 mensais que a ONU envia. Não reclama: voltou a ter cama, água e luz. E pode tocar seu violino, trocado pelo machado de cortar lenha nos tempos da guerra

O desafio a seguir é o menor e o mais agradável que a refugiada bósnia Tatjana Grubic (pronuncia-se Tatiana Grubitch) enfrentou no último ano. São 12h45 de um dia do ensolarado outono carioca e ela ensaia no banheiro do Clube Hebraica, em Laranjeiras. Tatjana, 34, é violinista profissional. Formada no Conservatório Tchaicovsky de Moscou e pós-graduada no Barbican Center Guild School of Music and Drama, em Londres, ela vai ser ouvida pelo maestro holandês Hubert Soudant.
Se ele gostar, Tatjana será contratada pela Orquestra Sinfônica do Teatro Municipal do Rio de Janeiro e poderá engordar o auxílio mensal de US$ 200 que a ONU manda a ela, seu marido, Emir Bosnic, 41, e sua filha Svletana Korunoska, 11. Os três estão no Rio desde fevereiro deste ano e são os primeiros refugiados da guerra da Bósnia a pedir asilo político no Brasil.
Às 13h, Tânia, o nome que Tatjana ganhou dos novos amigos brasileiros, acha que está no ponto. Entra no salão envidraçado David Ben Gurion (nome do fundador do Estado de Israel), de chão de madeira e boa acústica, empunhando seu surrado violino Steiner, alemão. Usa franjinha e corte Chanel no cabelo castanho, mesma cor dos olhos. Veste uma saia rodada branca, talvez séria demais para sua idade, e uma camisa sem mangas azul petróleo.
Para quem acabou de passar por uma guerra cruel e viveu uma fuga difícil, Tatjana não parece maltratada, apesar da maquiagem excessiva sobre a pele branca. A violinista abre uma carcomida partitura polonesa na obra "Melodias Ciganas", de Pablo de Sarasate, coloca-a no cavalete e começa a mostrar a experiência adquirida em concertos em vários países da Europa.
Tatjana toca de pé, a alguns passos do maestro Soudant, que está sentado e fumando muito. Quinze minutos depois, ela acabou. O maestro só consegue dizer: "Wonderful!". Por ele, Tatjana já está dentro da orquestra. Para ela, que há seis meses usava as mãos de violinista para cortar lenha na cidade de Banja Luka, a segunda maior da Bósnia e uma das mais atingidas pela guerra, é uma vitória fácil.
Como Tatjana, Emir e Svletana vieram parar na capital fluminense, a 11.300 quilômetros de sua cidade natal, é história que daria um filme. Tudo começou em 6 de abril de 1992, quando a ira dos nacionalistas sérvios (leia texto sobre a guerra à pág. 14) finalmente atingiu Banja Luka, no noroeste da Bósnia.
Até então, Tatjana era uma instrumentista de sucesso, com salário de US$ 2.000 engordado por aulas na universidade local. Havia casado recentemente com o professor universitário Emir, formado em física e filosofia, especializado em civilizações antigas e com salário semelhante.
Casal bem-sucedido de classe média, os dois tinham certa fama na cidade. Apareciam constantemente na televisão –ela, dando concertos, e ele, palestras ou lançando um de seus 20 livros. Moravam bem, num cômodo apartamento de um bairro residencial. Então, aconteceu o horror, o horror.
"Vivíamos todos bem na Bósnia", lembra-se Tatjana. "Não entendo até hoje o que aconteceu." O ódio entre muçulmanos, sérvios e croatas, que já havia causado a dissolução da ex-Iugoslávia e começado a guerra, chegou até sua cidade, até então um centro de convivência pacífica entre etnias. Banja Luka caiu sob o domínio sérvio e passou a sofrer os efeitos da "purificação étnica" –estupros, assassinatos, campos de concentração.
(continua)

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