São Paulo, sexta-feira, 15 de julho de 1994
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A lista de Ricupero

WALTER LONGO

Spielberg jamais pensaria em transformar esse enredo numa produção de cinema. Também como literatura de ficção, dificilmente seria um best seller procurado avidamente nas livrarias das grandes metrópoles. E mesmo como história contada de pai para filho, com certeza resistiria à uma geração. Mas essa constatação de falta de perspectiva histórica não diminui a importância do fato, nem reduz a complexidade da trama que está sendo elaborada.
Todos se lembram que Moisés guiou o povo judeu durante 40 anos através do deserto em busca da Terra Prometida. Mas poucos se recordam que o povo brasileiro já vaga por mais tempo que esse, atravessando governos corruptos, incompetência generalizada de seus líderes e cruzando um mar de corrupção que se abre à frente de todos.
Pois é exatamente esse povo que faz parte agora da lista de Ricupero. Uma relação formada por 150 milhões de nomes, todos aqueles que se pretende salvar do horror inflacionário –uma espécie de nazismo econômico, que separa cada vez mais brutalmente os ricos dos pobres, criando guetos e transformando nosso território num grande campo de concentração.
Em vez de contratá-los como fabricantes de panelas, a missão de Ricupero é fazer com que esse objeto de metal passe a fazer sentido na mesa de cada um.
A tarefa não é fácil e seus resultados ainda são imprevisíveis. Mas uma coisa já é possível afirmar: cada um dos personagens dessa lista está à altura desse esforço.
Afinal, que povo especial é esse que consegue adaptar-se com tal rapidez a situações tão adversas? Que gente é essa que sofre como poucos e continua mantendo o espírito solidário e pacífico? Que outro país do mundo seria capaz de passar por uma revolução como a do real com calma e respeito absoluto pelas regras e instituições, dando um exemplo de cidadania jamais visto em nação alguma?
Por incrível que pareça, este país é o Brasil, onde a maior troca de moeda da história está sendo feita com ordem, tranquilidade e uma grande dose de bom humor.
O office boy da frente ajudando o de trás na fila do banco, passageiros auxiliando os cobradores a fazer o troco, crianças curiosas criando histórias sobre os bichos que substituíram ilustres personagens, notas e moedas desconhecidas no bolso e solidariedade em todos os níveis, cores e credos.
Como sempre, os velhos e conhecidos profetas do apocalipse, arautos do caos e da desordem, preconizavam enormes filas e ranger de dentes, crise de patrões com empregados, bate-boca entre comerciantes e consumidores, instabilidade generalizada.
Todos fazendo um esforço enorme para se adaptar às novas regras de um mundo teoricamente sem inflação, cheios de fé renovada numa nação que até hoje não fez por merecer o privilégio de ter um povo como esse.
Há quatro anos, o governo tomou o dinheiro dessa gente. Agora, resolveu trocá-lo. Duas ações suficientes para gerar tumulto em qualquer país do mundo. Não no Brasil. Tiramos de letra mais essa. Sem trauma, com confiança e esperança.
Por isso, tenho orgulho de ser brasileiro –não pela seleção, nem pela Hortência. O coração bate forte e orgulhoso pelo cidadão comum. Tudo o que eu pude ver e ouvir nesses últimos dias de cruzeiro real me faz ter certeza de que o nome da nova moeda é, no fundo, uma homenagem velada à nobreza dos que vivem e trabalham por aqui.
Sinceramente, não sei se o real vai dar certo, mas um país que tem um povo como o brasileiro não pode dar errado.

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