São Paulo, sexta-feira, 15 de julho de 1994
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A terrível obrigação de vencer

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO – Duas imagens da sofrida vitória do Brasil contra a Suécia, no jogo de anteontem. A primeira foi fora do campo: os olhos esbugalhados de Pelé na hora em que Romário fez o nosso gol único.
Muita gente não gosta dele por suas atuações fora das quatro linhas. Não vem ao caso. Reclamam de seus comentários na TV, de sua sintaxe e até mesmo de seus palpites. Tudo bem. O fato é que, no momento do gol, ele não fez nenhum comentário, não disse nenhuma besteira. A câmera o pegou desprevenido, sem o equipamento de som que ele tirou da cabeça para melhor sofrer.
Seu olhar era desvairado, mistura de sofrimento e assombro, um olhar espantado diante do universo que, naquele instante, concentrou-se numa bola que balançava a rede dos suecos. Era um olhar faminto, olhar de menino pobre e já fatigado, que de repente é fulminado pela certeza de que mais uma vez a vitória era dele –como foi de todos nós.
Nos muitos anos em que atuou como ator dentro do campo, e foi sem dúvida o maior, nunca se deu ao direito de tanto sofrer. Poucas vezes na história do homem um só indivíduo expressou a formidável angústia de um povo.
A outra imagem foi a do próprio Romário, depois do jogo, enrolado na bandeira brasileira, andando sozinho, desgarrado dos outros, no meio do campo. Olhava para o chão, para si mesmo, criou um espaço próprio –ele e seu suor de vencedor–, não pulou, não confraternizou, não chorou nem rezou, como fez várias vezes durante a partida.
Estava tão na sua que parecia não haver jogado, que o gol da vitória não tinha sido dele. Criou um espaço estanque, ele e sua bandeira, ele e seu suor.
Como Pelé fora do campo, muita gente reclama de Romário, dentro e fora do campo. A insistência com que vem dando vitórias ao Brasil deixou nele, estranhamente, um traço de amargura, de solidão. E no momento maior de sua solidão, ele e seu suor não tiveram outro refúgio que não a bandeira que era, naquele instante, sua couraça e seu prêmio.
De uma forma ou outra, estávamos todos no olhar esgazeado de Pelé e na solidão de Romário em sua armadura de pano. Um e outra atingiram aquele espaço mágico onde cabemos com o nosso suor, a nossa fome, o nosso estupor diante da vitória.

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