São Paulo, sábado, 16 de julho de 1994
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'A Falecida' faz rir com Nelson Rodrigues

NELSON DE SÁ
DA REPORTAGEM LOCAL

Enfim, um Nelson Rodrigues à altura do original. Gabriel Villela deixou de lado a reverência e caiu na brincadeira com o proclamado maior autor de teatro do Brasil. "A Falecida" é uma comédia do começo ao fim, até com um certo exagero.
Nenhum problema. Estava na hora de alguém exagerar com o mui louvado dramaturgo. Nelson Rodrigues, de tão respeitado, começava a assustar encenadores e elencos. E começava a cansar o público.
Como Samuel Beckett, o autor irlandês seu contemporâneo, ele estava perdendo a graça. Estava se tornando um objeto de adoração. Também como Beckett, a saída parece estar mesmo na comédia.
Na montagem de Gabriel Villela, que estreou anteontem, em São Paulo, quem dá o tom é Yolanda Cardoso, uma veterana na interpretação das peças rodriguianas. Como Madame Crisálida, que tem a primeira fala, ela diz a que veio esta versão da peça.
Menos pelas palavras e mais por seu humor de comediante, de um gênero de comediante que andava desaparecido do teatro brasileiro. Yolanda Cardoso é ao mesmo tempo sarcástica e ingênua, como alguma criança travessa. Ou ainda, como Dercy Gonçalves.
Dercy que foi, também ela, uma estrela da preferência do dramaturgo, por estranho que possa parecer aos adoradores de Nelson Rodrigues. Como ela, Yolanda Cardoso fala diretamente ao público, conversa com ele, abre caminho para a trama e o resto.
Como sempre, com Gabriel Villela, muito da montagem se concentra nos figurinos e na cenografia. Desta vez, porém, não há uma divisão ou um confronto. O cenário com a mesa de bilhar e as roupas a partir de uniformes de futebol não amarram a cena.
Mais importante, desta vez a relação do desenho visual da montagem com as referências do texto não é distante. Futebol, bilhar, está tudo lá, menos como alegoria e mais como parte integrante do mundo de Nelson Rodrigues, ou de Zulmira e Tuninho.
A lamentar, apenas, que Gabriel Villela tenha como que deixado de lado as suas próprias imagens para dar passagem àquelas do autor. Falando mais diretamente, que tenha retraído a sua religiosidade.
O estranho é que "A Falecida" é uma peça em tudo religiosa, ainda que urbana, ou suburbana, ainda que de uma religiosidade protestante, em contraposição ao mundo católico e barroco do diretor.
Talvez Gabriel Villela tenha pensado que seria melhor deixar de lado tal religiosidade, em benefício da comédia. E talvez esteja certo. O que não se questiona no espetáculo é o seu humor, que abre caminho a uma popularização de Nelson Rodrigues.
Como Yolanda Cardoso, o elenco inteiro de "A Falecida" parece estar ali para fazer rir. É assim com Marcelo Escorel, que faz um Tuninho sem medo de ser carioca. Um malandro esperto mas emotivo –não à toa, bastante parecido com Romário, o jogador.
A atriz Maria Padilha, que faz Zulmira, vai na mesma linha. Mas está nela, sobretudo nela, o exagero da montagem. Mais do que engraçada, sua representação da suburbana Zulmira é caricata. Busca fazer rir para além dos diálogos, e não com eles.
Exemplo disso é o cacoete de atropelar sílabas, para criar um efeito cômico, o que acaba tirando o gosto das palavras, uma das qualidades evidentes do autor. Resultado disso é o incômodo de uma Zulmira que, em vez de querer a morte, parece rir dela.
Mas não deixa de ter a sua graça, a interpretação. E talvez seja mesmo o preço a pagar, para que se inicie a descoberta de um Nelson Rodrigues, finalmente, cômico. O que sempre foi dito, mas nunca havia sido provado. "A Falecida" é uma prova.

Peça: A Falecida
Autor: Nelson Rodrigues
Diretor: Gabriel Villela
Elenco: Maria Padilha, Marcelo Escorel, Yolanda Cardoso, Adriana Esteves e outros
Quando: De quarta a sábado, às 21h30, domingo, às 20h30
Onde: Centro Cultural São Paulo (r. Vergueiro, 1.000, tel. 277-3611)
Quanto: R$ 5,45

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