São Paulo, sábado, 23 de julho de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O efeito distributivo do real

ANTÔNIO CORRÊA DE LACERDA

A aceleração da inflação, ocorrida na última semana da passagem do cruzeiro real para o real, suscitou a discussão a respeito do efeito que isso deve representar para as rendas, uma vez que a última URV não refletiu essa oscilação, já que se baseia em três índices de preços que refletem a média do comportamento dos preços durante o mês de junho, não captando, portanto, o pico ocorrido nos últimos dias de junho.
O início de julho mostra um movimento contrário, onde há uma reversão dos preços. A continuidade, ou não, desse processo no médio prazo, dependerá de uma série de variáveis macroeconômicas e outras de ordem microeconômica, como por exemplo o comportamento do consumidor.
Em tese, há espaço para que os preços recuem, em termos reais, ao mesmo patamar praticado nos últimos meses: 90% dos preços da cadeira produtiva estavam urvizados e não houve pressões altistas significativas nos preços básicos da economia: salários, câmbio e tarifas públicas. A exceção fica por conta da alta taxa real de juros, que pode contaminar a nova moeda.
O comportamento do poder de compra dos salários após o real é algo que ainda será objeto de muita discussão. A pressão pela reindexação será, principalmente porque a inflação esperada para julho, embora significativamente menor que a do mês passado, ainda refletirá o conflito distributivo da conversão para o real.
O próprio resíduo que se refletira nos índices de preços de julho e agosto, e que o artigo 38 da lei 8.880 busca regulamentar, ainda será tema de controvérsias jurídicas e econômicas, envolvendo não só a questão salarial, mas os contratos em geral e o mercado financeiro.
Na questão salarial, a questão crucial será muito mais de ordem qualitativa do que quantitativa: o efeito da queda da inflação (ou a diminuição do imposto inflacionário) sobre, principalmente, os menores salários.
O cenário de inflação ascendente tornou inócua toda tentativa de manutenção ou elevação dos salários reais ao longo dos últimos anos. Adicionalmente, a indexação só garantia a reposição da inflação até a data do pagamento (como ocorria com a URV).
A partir daí os salários sofriam uma perda diária tão maior quanto mais alto o índice da inflação, entre a data do recebimento do salário e a efetivação do gasto (o imposto inflacionário!).
Este imposto inflacionário, pouco visível, mas de efeito perverso tende a afetar mais intensamente os mais pobres, que permaneciam com os cruzeiros reais no bolso, em casa ou na conta corrente.
As camadas médias e altas da população sempre evitavam ao máximo manter a posse dos cruzeiros reais, desenvolvendo proteções que iam das aplicações financeiras de alta liquidez (os fundos diários), ao uso de cheques, cartões de crédito etc.
O longo processo de estagflação da economia brasileira transformou-se em um cruel mecanismo de transferência de renda dos mais pobres para os mais ricos, os maiores beneficiários da inflação e dos mecanismos desenvolvidos para conviver com ela. O agravamento da concentração da renda nos anos 80 e início dos 90 tem, em uma de suas causas, este fator.
Este quadro revela que a estabilização econômica brasileira envolve, mais do que uma questão técnica, uma relação de poder. Setores e camadas sociais surgiram e enriqueceram em função da inflação e nem sempre têm interesse em que isso seja mudado.
Este é o maior desafio da estabilização da economia brasileira. O enorme conflito distributivo nela presente propicia, sancionados pela questão fiscal e monetária, privilégios os quais muitos não querem perder.

Texto Anterior: A política industrial do próximo governo
Próximo Texto: Preços no varejo de São Paulo diminuem 0,81% na 3ª semana
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.