São Paulo, sábado, 23 de julho de 1994
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Cansado de guerras o teatro volta ao palco

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

Ogesto do presidente François Mitterrand convidando tropa alemã para o desfile da Queda da Bastilha, em Paris, foi o grande e sereno gesto anti-teatral do nosso tempo.
Graças a ele, o teatro, arte eterna, sai definitivamente da rua. Volta ao palco, fecha-se de novo em suas paredes, em si mesmo. Ele é uma concentração, uma química, e tem tanto a ver com a vida quanto uma garrafa de vinha com um cacho de uva. Está em definitivo delegada ao cinema, que já começa a delegá-la à televisão, que acabará por limitá-la a programas tipo "Aqui Agora" essa história de transformar vida em arte de forma direta, agite-quando-usar.
No grande poema dramático "Axel", de Villiers de L'Isle-Adam (que aliás era um conde francês arruinado), o herói chega a uma exasperação com a vida, com as exigências do cotidiano e suas banalidades que toca as raias do cômico. Quando Sara, sua mulher, inconformada com o afastamento de tudo e de todos em que vivem no castelo, quer mergulhar no mundo, quer afinal viver, Axel responde, quase ofendido: "Viver? Isso nossos criados podem fazer por nós".
No mundo moderno não há, ou não houve, duas nações mais teatrais do que França e Alemanha, diferentes em tudo, menos numa espécie de talento para depurar, burilar o respectivo gênio nacional.
Nas duas últimas grandes guerras que o mundo sofreu (depois delas só houve o medo do apocalipse nuclear) o grande corpo-a-corpo foi franco-germânico, com Inglaterra e Estados Unidos à distância.
A carnificina de 1939-45 foi entre Alemanha e URSS, mas a dramaturgia, o palco continuou no mesmo lugar. Basta dizer que em Compiègne –onde há uma floresta civilizadíssima e um castelo onde moraram tanto Luiz 15 como Napoleão– foram firmados os dois armistícios das duas derradeiras guerras: o de 1918 e o de 1940. No primeiro o galã da peça era o marechal Foch, no segundo era o próprio Hitler, que fez questão de ocupar o mesmo banco que ocupara Foch. Teatro.
Os franceses, naturalmente, é que haviam dirigido o primeiro espetáculo de Compiègne, depois de ganharem a Primeira Guerra. Instalaram-se, como em camarins, nos vagões de luxo da via férrea que beirava a floresta, e ali os alemães ouviram e assinaram os termos da sua derrota.
Pois os alemães, usando os mesmos e desativados vagões em 1940, repetiram tudo, às avessas. Ao tempo do primeiro armistício, a França tinha ali heróis como Foch e Pétain. Em 1940 só havia no elenco francês atores menores, cujos nomes mal sobreviveram, como o do general Bergerat e o vice-almirante Le Luc. Os grandes atores nos vagões Pullman estavam do outro lado. Eram Keitel, Goering, Hitler. Haviam trocado de lado tanto as lágrimas quanto os papéis brilhantes.
Estes aqui, refrescando minha memória e a do leitor, não com um tomo de histórias na mão ou algum volume de enciclopédia nos joelhos e sim com um livro de reportagens, onde fui pescar a brilhante fala com que William L. Shirer cobriu, para a Columbia Broadoasting System, a cerimônia teatral de Compiègne em 1940.
A verdade, porém, é que a presença de Shirer naquela clareira da floresta de Compiègne já alterava muito a relação entre história e teatro. Aconteceu, ali, outra coisa, além da rendição da França. Houve, exatamente, uma rendição, ou, melhor dizendo, uma retirada do teatro. O espetáculo, em si, era ainda altamente dramático, quase operístico: no mesmo cenário do primeiro armistício, agora quem estava de joelhos era a França, sob o tacão da bota nazista.
Mas o teatro se retirou brusco, horrorizado, porque de repente invadiu o palco um intruso, um "voyeur" de outro mundo, outra tecnologia.
Aos gritos, diante de um microfone, Shirer proclamava: "Hello, America! CBS! William L. Shirer calling CBS in New York! Calling CBS from Compiègne, France". E Shirer prosseguia: "Temos um microfone na orla da floresta de Compiègne, quatro milhas ao norte da cidade de Compiègne e cerca de 45 milhas ao norte da cidade de Paris. Aqui, a poucos metros de onde estamos, no mesmo e velho vagão onde o armistício foi assinado naquela friorenta manhã de 11 de novembro de 1918"...
No tempo decorrido entre as duas grandes guerras as redes radiofônicas haviam, em parte, tirado o mundo do seu recolhimento. A BBC, a CBS, a Radiodiffusion Française, a rede alemã já davam o tom da aldeia global, enquanto na tela dos cinemas um Carlitos da vida real, Hitler, dava um passo de dança diante do mundo depois de ouvir no rádio a voz roufenha de Pétain reconhecendo a derrota da França e aguardando os termos do armistício.
Mas a partir de então, e culminando com o noticiário da CNN americana que de dentro de Bagdá seguia dia-a-dia a Guerra do Golfo, armada pelos americanos contra Bagdá, a partir daí a guerra passou a ser a vida crua e imediata. Só com o tempo poderá se transformar em arte, depois de filtrada pela imaginação de um indivíduo.
Cai o pano
Dia após dia, a partir do armistício de 1940, soldados alemães que ocupavam Paris desfilavam pela Étoile. Baionetas caladas nos fuzis furavam o Arco de Triunfo feito agulhas destinadas a não deixar sarar o orgulho dos vencidos. Era o rito da humilhação dispensável, um teatro velho, esvaziado de sentido, brutal em si mesmo e embrutecedor como espetáculo.
Permitindo, agora, que soldados alemães, em seus carros de combate, desfilassem como parte de uma força européia pelo mesmo Arco que varavam como força de ocupação, Mitterrand colheu seu sereno triunfo. Aos críticos ele disse: "Eu também combati os nazistas, mas esses soldados não têm nada a ver com o nazismo".
Ou com o teatro, o wagneriano teatro que o nazismo armava em toda parte, pois eram mais velhos de espírito que qualquer outro grupo humano. Aliás, se tivéssemos que escolher a última cena desse teatro histórico, ela só poderia ser o suicídio de Hitler, em Berlim, dia 30 de abril de 1945.
Há uns 50 anos o teatro se livrou do ponto, aquele funcionário invisível que, de uma espécie de gruta embutida na frente do palco, soprava aos atores as falas que eles porventura esquecessem. Hoje em dia, ou bem os atores decoram o papel direito ou escolhem outra profissão.
Nas antigas representações do teatro histórico a revolução foi mais profunda. Como se o ponto tivesse se revoltado, saído de sua gruta e passado a vigiar e corrigir os atores na hora e aos berros.
Messiânicos e hegemônicos
Escrevendo sobre a Copa 94 quando ela começava, dividi os times do torneio entre hegemônicos e messiânicos. Hegemônicos eram os do Primeiro Mundo, como o da Alemanha, Suécia, Holanda, que buscam a Copa como mais uma glória, entre as que já possuem. Os messiânicos acham todos, sem exceção, que Deus é da nacionalidade deles e que lhes dará a Copa para que se faça a Sua Vontade.
A luta final foi entre o Brasil, o mais messiânico dos messiânicos, e a Itália, o mais messiânico dos hegemônicos. Daí a agonia, a luta angustiosa, o rasga-coração: era sem dúvida Deus, Ele próprio, dilacerado em seu amor por filhos diletos, entre meu Padim Ciço e S. Genaro. Os jogadores brasileiros, como o mundo inteiro viu, rezaram, dando-se as mãos num círculo mágico, o Padre Nosso, depois dos pênaltis abençoados.
Na Itália, depois do jogo, o presidente da Federação Italiana de Futebol, Antonio Matarese, disse que "o Brasil venceu o tetra porque é um grande país, muito maior que a Itália, e por isso conta com mais santos no céu".
O curioso, no caso, é que a Itália é a campeã em número de santos, muito à frente da França ou da Espanha, enquanto o Brasil nunca conseguiu que o Vaticano lhe concedesse um único santo que fosse. Até hoje não temos nenhum. Ou não tínhamos, até domingo passado. Agora temos 11.

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