São Paulo, domingo, 24 de julho de 1994
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Há malas que vem pro trem

RICARDO SEMLER
O primeiro espanto veio com as folhas descartadas de um jornal do Rio, abandonadas ali no canto do aeroporto francês. Até aquele momento, eu havia assistido aos jogos da Copa através dos olhos imparciais de TVs estrangeiras. Para estas, o Brasil sempre foi o favorito, ou ao menos um dos prováveis vencedores. Daí o susto que tomei quando percebi a truculência que havia se instalado no Brasil em relação à seleção. Ficou claro que, além de ser uma das derradeiras paixões nacionais com chance de êxito, todos já haviam preparado as desculpas e os "eu não disse?" para o caso dos jogadores voltarem cedo para casa.
Aberrante, também, a série de baboseiras impressas pelos tais experts do futebol. Fiquei constrangido pelos colunistas do futebol, que devem estar procurando vírus de computador para apagar as idiotices que escreveram nestas semanas. Sobre os números, então, choveram ignorâncias deslavadas. Não estou só falando dos 6 bilhões de espectadores anunciados pelo Armando Nogueira (o mundo não tem isto de habitantes), mas também dos 2 bilhões recordes alardeados pela Globo. Que asneira. Dos 5 bilhões e pouco de habitantes, 2 bilhões estão na China e na Índia, lugares que estavam no meio da madrugada durante os jogos. Além disto, no resto do mundo há cerca de um bilhão que não tem acesso à TV. Será então que 100% da Europa, Japão (madrugada) e EUA estava ligada no jogo? Ora, vá catar coquinho.
E a lenda de que os EUA agora foram tomados pelo soccer? Que lorota conveniente. A audiência nos EUA foi mínima, muito menor do que os talk-shows de terceira categoria, e cerca de dez vezes menor do que o programa tipo Silvia Popovic da Oprah Winfrey, em plena tarde. E daí? Por que isto importa? De onde vem esta obsessão para que os EUA reconheçam o futebol? Por acaso as últimas 14 copas foram sem graça porque os americanos não gostam de jogo com os pés?
A quem interessa esta fictícia conquista da América? Certamente à FIFA do Havelange, personagem soturno de reputação polêmica – o Kim Il Sung da bola – e ao Rei Pelé. Só sei que nenhum de nós aqui fatura 50 milhões de dólares com isto. Ora, se fosse o caso de querer espalhar o futebol pelo planeta, a China seria endereço melhor. Mas lá só tem yuan, e não dólar. Agora, isto não tira o enorme mérito de nosso embaixador do esporte, um dos vinte grandes atletas do século, mas não vamos fazer de conta que reverte em favor do Brasil.
A polêmica da alfândega, então, mostra outra face desta nossa capacidade de engolir o prato pronto. Foi um vexame, criado pelos cartolas espertalhões que temos? Foi. A Receita tem razão? Tem. Mas, engraçado, fico lembrando que é só entrar em qualquer loja brasileira em Miami que, por 30 dólares o quilo, lhe prometem entregar, por via aérea, qualquer produto em casa, livre de alfândega. Por quais aeroportos será que esta mercadoria passa?
Enfim, a bruma encobre este gigante deitado. A Copa foi espetacular, a seleção brasileira foi grande, o Parreira sempre teve razão, e o resto foi misto de hipocrisia com enganação de trouxa. Parabéns aos que conseguiram ficar com a boca fechada, evitando a entrada da mosca da asneira, e só a abriram para comemorar os grandes gols e a maravilhosa vitória da serenidade sobre a premeditada histeria. Dá-lhe, verdadeiro Brasil!

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