São Paulo, domingo, 24 de julho de 1994
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Os filhos do apartheid

NANCY SCHEPER-HUGHES
ESPECIAL PARA A FOLHA, DA CIDADE DO CABO

Na apresentação especial do filme anti-"apartheid", "Assassinato sob Custódia", até então banido, na progressista Universidade da Cidade do Cabo, em agosto passado, eu estava despreparada para a reação da platéia: vaias acompanharam a cena do levante contra a forçada educação em africâner, a odiada língua dos opressores holandeses.
"Por que uma platéia educada reagiria tão mal a uma cena da juventude negra defendendo seus direitos?", perguntei eu a Pamela, minha nova colega de antropologia. Eu acabara de chegar com minha família à África do Sul para assumir o posto de catedrática em antropologia social durante a transição política e, ainda sofrendo de uma combinação de cansaço e choque cultural, precisei desesperadamente de uma interpretação. "Pessoas decentes estão cansadas de crianças violentas", respondeu.
Eu creditei sua resposta fria ao racismo sul-africano branco e a digeri. Afinal de contas, ela era a mesma colega que, quando nos trazia do aeroporto DH Malan para a Cidade do Cabo pela famosa estrada N-2, alertou-nos para ficarmos preparados para nos proteger. "Esta é a parte da estrada onde os 'totsies' (jovens bandidos negros) da cidade apedrejam carros 'de brancos' ", disse ela, exibindo seu sorriso tenso, brilhante e mordaz. Os barracos de plástico, papelão e ferro atrás de cercas de arame farpado pareciam campos de concentração bombardeados e superavam qualquer favela brasileira que já vi, em pura miséria física.
Antes do final do mês, vi suficientes cenas na mídia de crianças do subúrbio local queimando livros, fazendo algazarra e cantando: "um colonizador/ um branco/ uma bala", e virando e queimando carros de suspeitos de serem agentes do governo, visando professores, médicos, dentistas e assistentes sociais brancos ou negros que ousassem entrar no subúrbio negro, durante uma greve de professores negros, iniciada pelo CNA (Congresso Nacional Africano) chamada "Operação Barcelona". O nome era devido aos Jogos Olímpicos de Barcelona em 1992 e às tochas levadas pelos corredores.
Nos subúrbios sul-africanos, as tochas também são um símbolo de liberdade, mas foram usadas ominosamente: para impedir a entrada dos colonizadores, e para queimar suspeitos colaboradores da polícia e outros "sacanas" da cidade, que tiveram os barracos queimados ou os corpos incendiados com "colares" de tiras embebidas em petróleo, enroladas no pescoço.
Um destes "sacanas" tinha 15 anos: Ernest Mphahlele, do subúrbio de Tembisa, meteu-se com as pessoas erradas. Ernest vestia-se bem e, até que rivais de outra gangue o aleijaram, era um notório "boa-vida". Tanto que, quando os vigilantes adolescentes locais apareceram procurando por ele, sua mãe desistiu do filho, dando-o como morto. Dolly Mphahlele entendeu o duro código de disciplina que governava a vida no subúrbio negro, e quando os jovens ditadores alertaram-na de que ele seria "disciplinado", disse: "A única coisa que não suportaria é fogo em meu filho. Podem matá-lo, mas não o queimem."
No dia seguinte, Dolly Mphahlele enterrou os restos carbonizados de Ernest, cujo rosto belo e sorridente saiu na primeira página do "Sunday Times" de Johannesburgo, sob a manchete "Colar de Horror em Adolescente". A história saiu no "New York Times" e em outros jornais americanos.
Nesta época eu já estava documentando a violência cotidiana da vida no subúrbio, especialmente dos jovens. O que era extraordinário no caso era o tratamento pessoal dado à "morte brutal" de Ernest Mphahlele. A maioria das mortes nos subúrbios negros era registrada, quando o era, como número. Mortos brancos "contavam" (tinham nome, familiares e tudo mais); mortos negros eram contados. Os textos a seguir, de manchetes de jornais locais, são ilustrativos: "Outros 40 corpos encontrados em East Rand"; "Doze corpos removidos do Gugaletu - Baixas do fim-de-semana". "Outro corpo foi achado na estação de Katlehong".
'Violência sem Sentido'
Apesar de horríveis, estas imagens continuavam distantes, pois os subúrbios negros da redondeza se transformaram em "zonas proibidas" para não-negros de qualquer tendência política. Aprendemos a lição quando nosso carro foi ferozmente perseguido por catadores de lixo em uma entrada barrenta para a favela de New Crossroads. Queríamos assistir a um culto ecumênico de paz, que tinha sido anunciado na catedral Desmond Tutu.
Mas quando, a 25 de agosto, Amy Biehl, estudante americana da Fulbright, foi arrancada do carro e espancada até a morte por jovens gritando "morte ao colonizador", o círculo se fechou. Comecei a interiorizar as imagens sensacionalistas da mídia, descrevendo a "geração perdida" africana: descontrolada, louca, demonizada.
Enquanto uma chuva de pedras caía sobre seu carro, Amy rastejou para fora, e com sangue no rosto, sorriu e se identificou como amiga. Os torturadores correram atrás dela, atirando pedras e apunhalando-a nas costas e no rosto, até que ela caiu no chão. Um garoto roubou sua bolsa.
A morte de Amy foi como um divisor de águas, e líderes políticos sul-africanos de todas as tendências começaram a achar que a juventude dos subúrbios estava sem controle. Na celebração da memória de Amy na universidade de Western Cape, sua orientadora, a feminista negra Rhoda Kadalic, em lágrimas, falou da morte de Amy nas mãos de "jovens monstros" criados pela "máquina do apartheid". Na cerimônia, representantes da Liga Feminina do CNA chamaram mulheres brancas e negras para se juntarem à marcha a Guguletu, para tomar o subúrbio dos jovens "criminosos".
Peguei um pôster do CNA com a frase "Parem a violência sem sentido" e me juntei à marcha, que ia do supermercado Shoprite pela ponte através da favela, cruzando a estrada até "Gugs". Menos de 24 horas depois de Amy ter sido espancada até a morte, passamos por jovens grosseiros que faziam gestos indecentes. Continuei a exibir o mesmo sorriso forçado, estúpido e aterrorizado, segurando o pôster na frente da minha cara branca "de colonizadora".
Eu tentava adivinhar a reação das pessoas às palavras que carregava. Será que "violência sem sentido" implicava que a polícia fazia sentido em seus ataques aos subúrbios negros? Seria "sem sentido" um código racista para a violência negra irracional, em oposição à violência branca, racional?
Andei de um lado para o outro, esperando que algum jovem enfurecido começasse a atirar em meus pés (como nos faroestes). Acho que minhas axilas não eram a única fonte do suor pungente e acre que flutuava no ar. "Gugs" não era um lugar amigável; ninguém se juntou à nossa pequena e patética passeata. Era só meio quilômetro da estrada até o posto de gasolina, onde, em frente a uma fila de decentes casas de cimento, Amy foi atacada em pleno dia, por ter dado carona a amigos negros.
Por que ninguém parou o ataque? Medo? Prazer? Cumplicidade? Será que esta área "pertence" ao PAC e a morte de Amy foi uma declaração de guerra ao CNA? É com isso que a resistência política se parece? Mas talvez tenha sido o rosto sorridente de branca de Amy que entrou no caminho. Deixei a passeata, determinada a descobrir mais sobre os atacantes de Amy.
Justiça branca
Somente por causa da morte de Amy, há um julgamento "real". Três juízes, o juiz-presidente,

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