São Paulo, domingo, 24 de julho de 1994
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As lutas do apartheid roubaram das crianças sua infância

NANCY SCHERPER-HUGHES

Friedman, ladeado por dois assessores –uma branca e um negro. O juiz Friedman é chamado de "Vossa Excelência", pelos advogados de defesa e pelos promotores. As becas são vermelhas, a corte rica em cadeiras e bancos de madeira polida.
Os dois promotores são brancos e africâners; os dois advogados de defesa são negros, de história política radical. O processo já levava vários meses. Os advogados de defesa acusaram a polícia, com a ajuda dos médicos da prisão, de ter forçado "confissões" dos três acusados, por faltarem evidências dessa culpa. A hermenêutica da suspeita toma a Corte Suprema, à medida que cada grupo encara o outro –polícia, réus, advogados, juízes– com desconfiança e até ódio evidente. Mas a presença de observadores internacionais promete alguma justiça.
Que justiça era aplicada pelo Estado sul-africano para a ainda mais terrível morte do garoto Earnest Mphahlele, de 15 anos? Nos distritos e nas terras dos bantos, existem as chamadas "cortes populares" –invenções do "apartheid" cobertas pelo manto das "tradições culturais"– a justiça é feita mais pelas regras do chicote e do "colar", do que através das regras da lei.
Quando eu e minha filha de 20 anos subíamos as escadas da Corte Suprema, fomos abordadas por uma dúzia de jovens radicais cantando e zombando. Marchavam em forma, como que enfrentando armas de fogo imaginárias no tribunal, e pulavam em frente dos carros de brancos que entravam na rua. Um contingente de polícias da ISD (Divisão de Estabilidade Interna) de farda camuflada, preparados para uma batalha urbana, não fizeram nada para coibir o comportamento dos jovens selvagens, alguns com apenas nove ou dez anos. Será que a polícia queria que a imprensa internacional capturasse imagens fadadas a incitar sentimentos negativos? Entre gritos de guerra, os jovens chutavam uma bola de futebol quase murcha. Uma das crianças sorriu para mim e eu, desarmada, retribuí o sorriso.
Mas, durante os primeiros estágios do julgamento, quando as testemunhas avançavam para descrever em detalhes horríveis a agonia final de Amy Biehl, seus gemidos implorantes, enquanto era, como São Estevão, apedrejada até a morte, nas galerias superiores do tribunal, os jovens do PAC riam –e aplaudiam. O juiz, revoltado com a explosão, mandou esvaziar o tribunal, o que deixou a reação do réu nº 2, Mzikhona ("Easy") Nofemela fora das reportagens internacionais. O jovem virou para a galeria e gritou: "O que há de errado com vocês? Deêm o fora!"
"Por que os jovens riam?" perguntei eu a Nona Gozo, a bonita e delicada advogada de defesa.
"A risada não foi aceita, nem por mim, nem por ninguém, mas não me chocou. Moro em um subúrbio, sei como o 'apartheid' machucou os sentimentos... As pessoas morrem com tanta frequência, matar se resume a nada."
"O que você me diz sobre os réus?" "São crianças... de fato, crianças adoráveis, como qualquer outra. Em circunstâncias normais, teriam uma vida maravilhosa. Mas são filhos do 'apartheid'. Vêm de lares falidos e famílias depravadas. Foram expostos a tudo."
Penso em como as crianças da favela de Chris Hani onde eu trabalho, brincam de "funeral" e "AK-47". Poucas escapam de cenas de violência –incêndio de barracos, chicoteamentos e corpos descobertos no lixo. Seus desenhos retratam cenas de violência: pessoas brandindo lanças, ataques policiais, pessoas descobrindo corpos, pessoas colocando feridos em ambulâncias e barracos queimando. Cenas de guerra.
O fim da infância
Quanto aos garotos acusados de matar Amy Biehl, a história do "apartheid" está graficamente inscrita em seus corpos, em sua pele social. Em defesa da acusação de tortura policial, o Major Lester testemunhou ter examinado "Easy" Nofemela quando ele confessou, e encontrou apenas cicatrizes antigas em seu corpo jovem. Mas cada uma das cicatrizes contava uma história de violência: punhaladas, tijoladas, facadas, queimaduras, cicatrizes de infecções.
Nofemela é entretanto um participante ativo e alerta do julgamento, enquanto Manquina (réu nº 1) e Vusumzi Samuel Ntamo (réu nº 3) estão sonolentos e indiferentes. Manquina chupa o polegar. Ntamo cochila. Ambos têm infecções respiratórias crônicas. No caso de Ntamo, a "infecção" é tuberculose, a praga dos subúrbios. Quando chegou sua hora de depor, foi incapaz de responder questões básicas e se confundiu em detalhes.
Sua performance melancólica pegou até a defesa desprevenida. Foi enviado para observação psiquiátrica, afim de verificar se era capaz de entender ao menos os procedimentos legais.
Juventude demoníaca
O interesse hoje manifestado pela juventude dos subúrbios da África do Sul emergiu de atos de violência, como a morte de Amy Biehl, em que crimes foram disfarçados de ações revolucionárias.
Diz-se que a maior parte da violência dos subúrbios –de negros contra negros– é perpetrada por gangues de jovens, que participavam de lutas políticas, e se envolveram com a violência pela violência. Assim, a violência é considerada "sem sentido", "selvagem" e "apolítica". Essas percepções conjuram irracionalidade, primitivismo, a chegada dos bárbaros.
A juventude sul-africana se tornou demoníaca. As imagens projetadas pela mídia são aterrorizantes e arquetípicas: de como "bruxas" e "colaboradores" são queimados vivos; a justiça popular das "cortes kangerroo" que ordenam decepamentos ("olho por olho" e às vezes "mão por mão" ou "peito por peito"), e chicoteamentos; a "Estação Repressora" negra, que oprime crianças negras inocentes.
As imagens paranóicas foram alimentadas nos últimos anos pelas explosões violentas e tumultos seguidos da morte de Chris Hani, o massacre de St. James em julho de 1993, o assassinato de Amy Biehl, o massacre de Heidleberg Pub no dia de Ano Novo e pelas violentas marchas Zulu no centro de Johannesburgo. Delírio, morte, dança e rebelião são imagens que descrevem um setor da sociedade como perdido, além da salvação.
Essa idéia sobre a juventude dos subúrbios é compartilhada até por Nelson Mandela que, num discurso, lamentou a transformação dos orgulhosos "Jovens Leões" das décadas passadas na "Geração Perdida" de hoje.
Disse ele: "A juventude dos subúrbios negros teve por muitos anos um inimigo visível, o governo. Hoje, o inimigo não é mais visível, pois transformações (políticas) estão acontecendo. O inimigo agora sou eu, e você –pessoas que têm um carro e uma casa."
Mas o CNA é em parte culpado –os "Jovens Leões" eram usados pelo CNA em campanhas que tiravam a juventude da escola, para ficar pronta para a "luta". Mas quando esta chegou ao fim, os jovens foram postos de lado. Com idade para brigar, não foram considerados maduros para votar –a promessa de Mandela, de abaixar a idade mínima de voto para 14 anos, não foi cumprida.
Roubados das escolas, manipulados por slogans políticos ("revolução agora, escola depois"), controlados por gangues, torturados pela polícia e perseguidos por pelotões de extermínio, os jovens dos subúrbios foram crianças sem infância. Conheci uma garota de 11 anos do subúrbio de Nyanga que foi presa no final dos anos 80.
A menina tinha inocentemente vestido a camiseta da irmã mais velha, com o logotipo do CNA. A polícia a torturou até que "entregasse" os nomes de "companheiros de luta". Aterrorizada, inventou alguns nomes e foi libertada. Acabou se transformando em informante correndo perigo tanto em casa (como "colaboradora"), quando na prisão; tanto que, segundo ela, as fronteiras entre sua casa e a cadeia se confundiram.
A juventude dos subúrbios foi recrutada para servir de tropa em uma guerra pela libertação que lhes custou a infância, a inocência, a saúde, a educação e a própria liberdade. As explosões de violência dos jovens não são mais irracionais e caóticas do que a violência no Estado do "apartheid" contra o qual eles se mobilizaram.
Toda a África do Sul sofre de neurose de guerra e fadiga de batalha. Às vezes, parece que a alma do país foi amputada e devorada pelos "monstros" do "apartheid" e agora pelos filhos do "apartheid".
Tenho, é claro, muita esperança. No necessário "acerto de contas", os "Jovens Leões" feridos da África do Sul merecem direitos. Seu heroísmo deve ser reconhecido, suas perdas reparadas e seus corpos tratados.
Sobretudo suas almas fugitivas devem ser recapturadas e ancoradas em uma nova moral, em que o rugido dos leões possa anunciar a vida e não o medo, onde a dança elástica e saltitante possa ser uma manifestação contra a morte, ao invés de prelúdio para uma celebração após a morte.

NANCY SCHEPER-HUGHES é professora no departamento de antropologia na Universidade da Califórnia, Berkeley, e no departamento de antropologia social da Universidade da Cidade do Cabo, África do Sul; durante dez anos (1982-1992) fez um estudo antropológico sobre amor materno e a morte de crianças na área rural do Nordeste brasileiro; publicou, entre outros, "Death Without Weeping", "Saints, Scholars and Schizophrenics", "Mental Illness in Rural Ireland" e "Child Survival"

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