São Paulo, terça-feira, 26 de julho de 1994
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Lei Rouanet da Cultura devia ser extinta

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Sempre sinto um tremor quando ouço a palavra "cultura". Não tiro um talão de cheques por não tê-los, como Rockfeller; nem tiro o revólver (como Goebbels), se bem que muita vez seria apropriado.
"Cultura", o que é isso? De onde vem esta coisa meio vaga, este clima meio gasoso, que envolve a palavra no Brasil? A palavra cultura me lembra as paisagens rentes ao chão de verão, coisas que tremulam no asfalto quente, que todos vêem, mas ninguém delineia.
Já vi muitas acepções para esta palavra.
"Cultura" já foi (e ainda é) um substitutivo, ou o "ersataz" (como dizem os cultos) da política para os pequenos burgueses preguiçosos da luta "suja" nos sindicatos ou nas barricadas. Assim se montou o CPC, nos anos 60, que, empoleirado em cima dos conceitos do "proletkult" e até de vagos ecos de Gramsci, achava que a "conscientização" se faria pela mutação das vontades. A história seria mudada pela via das consciências. Pouco se sabia que a realidade era mais impenetrável.
Mesmo tendo passado esse tempo messiânico, continua com aura de futuro a palavra "cultura".
Qual a origem desta visão alada de cultura, de algo que "vai" acontecer? É isto uma herança portuguesa, um resquício de sebastianismo que ainda vive? Estaremos condenados a viver querendo ser algo que não somos? Talvez seja nosso defeito, nosso carma, talvez seja nossa grande "identidade", a tal tão procurada: uma identidade dinâmica, uma insatisfação permanente. Procura-se vive ou morta uma identidade nacional.
Cultura aqui é certamente uma coisa portuguesa e com laivos da contra-reforma melancólica e inquisitorial. Graças a Deus que a negrada nos salvou, como salvou os EUA com o jazz... Cultura (branca) aqui rima com sepultura, cheira a museu.
"Cultura" aqui parece uma pessoa, parece uma deusa grega, pior que isso, uma deusa aleijada, uma espécie de Palas Atena verde-e-amarela enferma, uma senhora doente. E todos sussuram preocupados: "Como vai a cultura brasileira?" E respondemos: "Chiii.. coitada, não passou nada bem esta noite..."
Este emaranhado de erros e de velhos vícios é que atrapalha a compreensão do óbvio: a cultura é uma coisa do mundo real, uma vivência possível, um sonho concreto, é o país se pensando dentro do mundo, exercendo o efêmero e sofrendo pelo eterno, que aliás é o drama humano. Se entrar numa de "sagrada", dança; se pensar só no mercado, dança também.
Acho que a coisa que mais precisamos no Brasil é de uma sincretização maior entre os dois opostos. Sem perdermos esta marca de nascença que nos acompanha, de Gregório de Matos até Cazuza, precisamos organizar um chão. Precisamos dar um banho de obviedade mercadológica anglo-saxã nesta "espiritualidade" impotente. Não existiria a genial música brasileira de hoje sem as companhias de disco aqui fincadas. Multinacionais geraram os finos Tom, Caetano, Chico etc...
Já nossas leis de "estímulo" à Cultura são uns horrores. Não servem para quase nada, apenas para perpetuar o calvário dos artistas e o desdém dos empresários. A Lei Sarney, que foi a melhor, pois criava uma negociação direta entre empresas e artistas, caiu numa picaretagem típica da época: "rebates" ("kick-backs") por debaixo da mesa, jogadas triangulares entre empresários: "Eu financio o teu livro sobre a cerâmica marajoara, tu pedes um milhão eu te dou 500 e guardo o resto, tu fazes o mesmo com meu banco ou minha fundação."
Era a cara do Brasil malandro, mas, apesar das picaretagens, abria a novidade de que se faria cultura como negócio. Acabou com Collor. Aí veio a peste. A pior Lei do mundo, a Lei Rouanet, que está vigente. É um quebra-cabeças kafkiano que é um retrato da luta entre o tímido iluminismo de quem a fez e a desconfiança dos tecnocratas da economia.
É uma lei que não serve pra nada, enlouquece os artistas e faz os empresários rirem de horror. Todas estas leis expressam a velha idéia de que cultura tem de ser "ajudada", patrocinada, contra o conceito moderno de que cultura pode ser um bom negócio, não só como marketing, mas como lucro real.
O resultado são leis "frankenstein", leis-centauros, metade famintos menestréis pedindo apoio, metade burocratas desconfiados, nos chamando de ladrões. Metade ajuda, metade armadilha –criando uma esquizofrenia cultural da qual a lei Rouanet é o mais pavoroso exemplo, como a mesquinha Lei Mendonça também.
Parecem leis, mas são empecilhos. A Lei do Audiovisual é boa, já criada por Houaiss e finalizada por Nascimento e Silva, mais moderna, mas também (já ficou visível) precisa de aperfeiçoamentos práticos para fazer renascer o cinema destruído por Collor. Ninguém lembra, mas fazíamos cinco, seis milhões de espectadores em muitos filmes e ganhamos 200 prêmios internacionais.
Precisamos criar produtores, empresários de cinema, visando o lucro num mundo que demanda 60 mil filmes por ano.
É verdade, como disse a "Veja", que a maioria dos empresários pensa que "cultura" é o pote de Murano que a patroa comprou de tarde na butique da amiga para ornar o hall de mármore falso que o arquiteto bicha pós-moderno criou para seu palacete de cristal e fórmica.
Claro que a maioria dos burocratas econômicos se alivia com a idéia de que "há fome no Piauí, mas em compensação também não temos um cinema!", ou "morrem criancinhas nas favelas, mas graças a Deus o teatro vai mal!".
Claro que também os artistas somos todos um bando de alienados do mercado, como se fóssemos sagrados gênios que não podem sujar as mãozinhas no mundo real. Claro que a burrice é maior do que a pedra da Gávea. Mas, o Brasil não precisa de artistas. O Brasil precisa é de produtores de cultura, não de mecenas, mas de empresários de teatro, de cinema, de ballet, de ópera, de livros, de rock, do cacete a quatro.
Artista pinta depois. Isto só acontecerá quando o governo estimular a cultura como empresa, como negócio, gerando empregos, rendas, novos impostos. Fleury e Ohtake estão fazendo uma boa lei estadual, como exemplo.
O atual ministro da Cultura é um bom tributarista e o ministro da Economia é um homem de cultura. Eles saberiam criar leis não esquizofrênicas, que não sejam o filho bastardo de leões da Receita como intelectuais neo-clássicos. leis novas, arejadas que criem um "culture-business", um "show-business" neste país.
Tremam, oh pálidos poetas – a arte só virá como busca do lucro!

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