São Paulo, terça-feira, 26 de julho de 1994
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"Hagoromo" revela música na poesia de Haroldo de Campos

NELSON DE SÁ
DA REPORTAGEM LOCAL

Um dos achados maiores de "Hagoromo", encenação da peça Nô transcriada por Haroldo de Campos, apresentada na Jornada Sesc, foi identificar o manto de plumas do original de Zeami com o parangolé de Hélio Oiticica.
Não é de agora que Zé Celso, o diretor do Oficina, buscava ele também um caminho para levar a obra-figurino do artista plástico ao palco. Nas suas duas últimas peças, "As Boas" e "Ham-let", chegou próximo de conseguir.
"Hagoromo" conseguiu, por completo. O momento da dança da ninfa ou do anjo com "o manto de plumas", que é a tradução literal de hagoromo, é de grande beleza tanto dramática como visualmente. Derruba quaisquer restrições.
E há restrições a fazer, à peça. A narração com Alceu Estevam, que faz o pescador que encontra o manto, é arrastada e soluçante desde o início, não sendo facilitada depois pelas pausas incontáveis, por silêncios, por paralisação.
Alice K., que está limitada na interpretação propriamente dita, concentra-se demais nos gestos e provoca os buracos de ação. No papel do anjo, toma minutos e mais minutos para, por exemplo, fazer a sua entrada em cena.
Nada contra, fosse o tempo preenchido por gestualização mais rica; menos óbvia, como criação. Mas tudo isso é esquecido na metade final, longamente anunciada, quando enfim o anjo cede ao pescador e faz o bailado da lua.
Aproveitando cada movimento, cada camada do parangolé, Alice K. parece estar se deliciando com o vôo, ela própria. Ela roda, joga o manto com um braço, depois outro, corre. Sob o canto do vocal Vésper, que se reúne à sua volta, no palco, como se fossem estrelas, ela dança distribuindo "benesses e felicidade" aos mortais, como é promessa de Haroldo de Campos.
Fica por aí, o que não é pouco, o melhor da representação da atriz para o texto em transcriação, do poeta concreto. Alceu Estevam, por seu lado, consegue seu melhor com o texto ao buscar uma faceta cômica ao papel do pescador.
Mas a poesia da peça, que foi editada ano passado pela Estação Liberdade, só vai surgir mesmo com o coral. O grupo Vésper, sob a direção musical de Fernando Carvalhaes, revela musicalidade insuspeitada na transcriação.
Está aí outro achado maior do espetáculo. Passagens como a que canta "Nuvens como ondas contra o vento/ como ondas nuvens sublevadas" embalam o espectador como ninguém espera, da poesia visual de Haroldo de Campos.
Os versos tornam-se música, ganhando realce cada som, cada sílaba na voz das seis cantoras do Vésper. As imagens se formam como em sonho, por sugestão, por ritmo, possibilitando um prazer pouco comum no teatro de hoje.

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