São Paulo, terça-feira, 26 de julho de 1994
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Justiça para os índios

DALMO DE ABREU DALLARI

Os índios, pacíficos e confiantes, recorrem à Justiça do branco para terem garantidos os direitos que lhes foram expressamente assegurados pela Constituição, especialmente o direito à posse da terra que ocupam há centenas de anos.
Os brancos, que fizeram a Constituição e que deram ao Poder Judiciário a tarefa de proteger os direitos, invadem as terras indígenas, desprezam uma decisão judicial, sonegam meios para que esta seja cumprida e ainda ameaçam de morte juízes e procuradores encarregados de fazer respeitar os direitos dos índios.
Afinal, quem é o "civilizado" nesta história, o índio ou o branco? E como impedir que um país em que isso acontece fique desmoralizado perante o mundo?
O que acaba de ser dito está ocorrendo agora no Brasil. Os índios são guaranis integrantes da comunidade Jaguari, do Estado de Mato Grosso do Sul.
No ano de 1991, uma portaria do Ministério da Justiça determinou a demarcação das terras indígenas do Jaguari, cumprindo mandamento constitucional. Entretanto, logo em seguida uma liminar concedida por juíza federal de primeira instância favoreceu invasores das terras, determinando que fosse suspensa a demarcação.
Pior do que isso, foi ordenado que os índios ficassem fora da área enquanto não houvesse uma decisão judicial definitiva a respeito da validade de títulos de propriedade privada sobre terras indígenas (isso normalmente levará muitos anos).
Os índios, que não querem a terra para fazer negócio ou para se sentirem ricos, mas, rigorosamente, para poder sobreviver, foram obrigados a procurar abrigo numa favela. E não foi por acaso que justamente nessa região ocorreram inúmeros suicídios de índios guaranis, como a imprensa tem noticiado ultimamente.
Dessa ordem judicial houve recurso e, após longa espera, no dia 3 de maio de 1994 o Tribunal Regional Federal sediado em São Paulo decidiu, por unanimidade, restabelecer os direitos dos índios. Em voto magistral do juiz Fauze Achôa, integralmente acolhido pelos demais julgadores, dois pontos foram afirmados com muita clareza e solidez.
Em primeiro lugar, as terras ocupadas por índios são propriedade da União, que por exercer a soberania sobre todo o território nacional tem precedência sobre qualquer outro interessado. Por tal motivo, suas terras não podem ser objeto de pretensões possessórias ou reivindicatórias de particulares, que deverão pedir indenização se julgarem que sofreram algum prejuízo ilegal.
A par disso, foram acentuados os objetivos humanos e sociais da proteção constitucional às comunidades indígenas. Como bem salientou o acórdão, "se os índios forem condenados a estar afavelados e fora de suas terras, por certo desaparecerão como grupo étnico e cultural".
Agora vem a pasmosa e revoltante informação: o Tribunal proferiu sua decisão no dia 3 de maio e até agora não foi possível executá-la. Os índios continuam afavelados e começam a desconfiar de que o julgamento, a que alguns de seus líderes assistiram, não passou de mais uma encenação do branco para enganar índio, porque dele não resultou qualquer efeito prático. Foi mais um truque dos "civilizados".
Começa a circular entre os membros da comunidade, já à beira do desespero, uma proposta de suicídio coletivo. Numa posição oposta, mas também reveladora da desesperança, um grupo sugere a tentativa, quase suicida, de tentar retomar a área pela força, agora com a legitimação da decisão judicial.
E por que motivo não se executa normalmente, em ordem e por meios pacíficos, a decisão do tribunal? As explicações chegadas a São Paulo são vergonhosas, para não usar um qualificativo mais forte.
Fala-se na falta de verbas para pagamento da gasolina e das diárias a que teria direito a Polícia Federal, ao mesmo tempo em que se diz que sem uma forte garantia policial nenhum oficial de Justiça se atreve a ir à área para retirar os ocupantes ilegais.
Menos ridícula e certamente de maior gravidade é a informação de que o representante do Ministério Público no local, que deveria denunciar ao tribunal o absurdo da inoperância dos organismos policiais, mantém-se calado por ter sido ameaçado de morte pelos invasores das terras indígenas. Seja essa ou qualquer outra a verdadeira razão, o fato é que a decisão do Tribunal Regional Federal permanece letra morta.
Desse modo, todo o Poder Judiciário se desmoraliza e dá margem à acusação de que só é eficiente quando suas decisões interessam aos ricos e poderosos.
Com a inevitável divulgação desses fatos e das tragédias que são iminentes, não será surpresa se dentro de pouco tempo a imprensa internacional voltar a colocar os brasileiros nas manchetes. Não mais para os elogios à alegria descontraída e inocente mostrada com as amenidades da Copa do Mundo, mas para acusar o Brasil de ser protetor de genocidas e matadores de índios. Tomara que os fatos não permitam isso.

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