São Paulo, domingo, 31 de julho de 1994
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Carvoeiros trabalham por arroz e farinha

AMAURY RIBEIRO JR.
DA AGÊNCIA FOLHA, EM BURITIZEIRO (MG)

A corrente que prende homens e crianças de até 10 anos nas carvoarias do norte e noroeste de Minas é a dívida contraída em armazéns.
Essa dívida decorre da compra de arroz e farinha, que mal repõem as energias necessárias para começar mais um dia de trabalho, que nunca dura menos de 18 horas.
A carvoaria queima a madeira e consome esses homens e crianças. Alguns nunca viram dinheiro.
Homens que trabalham apenas em troca de comida estão submetidos a um regime muito parecido com a escravidão, oficialmente banida do Brasil em 1888.
Meninos como Luiz Carlos da Silva, 10 anos, que trabalha nas terras da emPresa Agrosete, nunca foram à escola.
Os "gatos" (empreiteiros contratados para recrutar mão-de-obra de forma ilegal) utilizam o mecanismo do endividamento para manter presos os trabalhadores nas áreas de cerrado e reflorestamento.
Isolados das cidades, os carvoeiros são obrigados a comprar arroz e farinha nos armazéns dos próprios "gatos".
No fim do mês, os trabalhadores recebem a conta: o arroz e a farinha valem muito mais do que 18 horas por dia de trabalho.
Os carvoeiros ficam impossibilitados de abandonar as carvoarias até saldar as dívidas.
Essa realidade foi constatada pelo repórter da Agência Folha, que trabalhou durante quatro dias como ajudante do carvoeiro Valdivino Antônio Ferreira, 34, em Buritizeiro (MG).
A história se repete em várias outras carvoarias do Estado.
Durante quatro dias, o repórter dividiu com Valdivino, sua mulher, Jane Ferreira, 26, e os filhos, Janaína, 5, Valdivilson e Josiane, de 11 meses, uma casa de 24 metros quadrados.
A casa, construída com eucalipto e bambu e coberta com sapê, fica na Fazenda do Onça, distante 30 quilômetros do centro de Buritizeiro pelo rio São Francisco.
Enquanto retirava o carvão do forno, Valdivino contou que foi recrutado pelo "gato" Duti Matheus, em Mirabela (MG), há cerca de seis meses.
"Viemos na carroceria de um caminhão. Todo mundo apertado. A viagem foi feita à noite por causa dos fiscais do trabalho", conta.
O "gato" se comprometeu a dar a Valdivino 6% da venda do carvão. Valdivino, até hoje, não sabe qual é o preço do metro cúbico do carvão e nem quanto ele e sua família produziram.
"O gato diz apenas que é pouco e que não dá nem para pagar a dívida do armazém. Se não pagar a dívida, não dá para sair", diz.
A exemplo da maioria dos carvoeiros, Valdivino e sua família se alimentam à base de arroz e farinha: "A gente pede para o gato trazer uma verdura e pôr na conta, e ele nunca traz.".
Trabalhando quatro dias com a família de Valdivino, o repórter da Agência Folha apurou que ela produz cerca de dois fornos por dia, equivalentes a cinco metros cúbicos (40 sacos de estopa) por dia.
O carvão é vendido por R$ 22,00 o metro cúbico (oito sacas de estopa). Trabalhando 30 dias por mês, Valdivino deveria receber cerca de R$ 423,00 (equivantes a 6% de R$ 6.600, que é a produção total).
Desde que chegou à Fazenda do Onça, no entanto, Valdivino nunca viu a cor do dinheiro. Ao contrário da maioria das demais carvoarias, Valdivino queima madeira do cerrado em vez de eucalipto.
A madeira é transformada em carvão, principal matéria-prima que fornece energia às indústrias siderúrgicas.
Nas áreas de reflorestamento, as propriedades são fechadas até com cadeados, como é caso da fazenda da empresa Interlagos, na BR-040, em Três Marias. Os carvoeiros só saem do local com autorização.
"Para a gente sair daqui, tem de pedir permissão para o vigia que tem a chave do cadeado", disse o carvoeiro José Augusto Pereira.

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