São Paulo, domingo, 31 de julho de 1994
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Elegia para uns joelhos

MOACYR SCLIAR

"Ai, joelhos, joelhos. Vocês sabem o que estão dizendo de mim, queridos joelhos? Não, vocês não sabem –vocês não ouvem. O que é uma bênção: assim vocês são poupados do sofrimento pelo qual estou passando.
Ela diz que eu a agredi. A moça que eu amo diz que eu a agredi, que eu lhe rasguei a roupa. A mãe dela vai mais longe, afirma que sou marginal e entrou com uma queixa-crime contra mim.
Mas vocês são testemunhas, joelhos meus. Vocês são testemunhas do sofrimento pelo qual passei para provar a minha paixão. Quinze quilômetros andando sobre vocês. Quinze quilômetros andando de joelhos para chegar à casa dela. Alguém já viu penitência assim, joelhos meus? Nem mesmo os flagelantes da Idade Média passaram por prova tão dura.
Foi com vocês, joelhos, que eu mostrei meus sentimentos. Outros dizem, meu coração sangra por ti, e coisas do gênero. Está certo, o coração é o símbolo do amor, mas –quem vê o coração? Quem sabe se ele realmente sangra? O coração se esconde dentro do peito, o coração não se expõe, o coração é nobre.
Os joelhos não. Os joelhos são humildes, os joelhos estão à mostra, os joelhos, que suportam o corpo, estão prontos a se dobrar diante do inefável, do sublime, do maravilhoso. É por isso que as pessoas rezam ajoelhadas. Sobre os joelhos apóiam-se as grandes religiões do mundo.
Eu protegi um pouco vocês: ataduras, tiras de borracha, joelheiras. Se os goleiros o fazem, por que não o faria eu? E mesmo assim vocês sofreram. Mesmo assim vocês incharam, ficaram esfolados. Vocês queriam compartilhar de minha dor. Com estas chagas, não muito grandes é verdade, mas perfeitamente visíveis.
Não adiantou nada, joelhos. Ela não se sensibilizou. Da próxima vez vou fazer estes 15 quilômetros, mas plantando bananeira. Quem sabe andando sobre as mãos eu consiga aquilo que vocês não conseguiram."

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