São Paulo, domingo, 31 de julho de 1994
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Aldous Huxley foi um visionário da clonagem

WALTER CENEVIVA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Dois eventos coincidentes tornam quase obrigatória a clonagem humana como tema desta coluna. Se clonagem lhe parecer estranho, conto o que é. Trata-se de um processo científico, cujo objetivo consiste em permitir o nascimento de vários indivíduos geneticamente idênticos, mediante a divisão de um mesmo elemento vivo.
Clonagem humana, assim, corresponde a adotar o processo com a finalidade de extrair de partes de um mesmo embrião, aplicadas em várias mulheres, tantos seres humanos iguais quantas sejam as partes do embrião. O leitor dirá que isso não existe. Ainda não. Todavia, a clonagem é corriqueira em vegetais e há experiências bem sucedidas no reino animal. Admite-se que será possível no gênero humano num futuro não muito distante, inicialmente usando o ventre feminino, mas depois (quem sabe?), o de primatas e mesmo "incubadeiras" de laboratório.
O leitor poderá dizer que clonagem é antiética, além de ofender princípios religiosos. Se para o leitor o conceito de ética compreende um ramo da filosofia que analisa, valoriza e distingue o moralmente correto, mediante regras cujos critérios justifica, estamos de acordo.
Importante para esta coluna jurídica é verificar se se trata de comportamento contrário ao direito. Se fosse cientificamente possível hoje, a clonagem ofenderia preceitos constitucionais e legais relacionados com a dignidade da vida, a capacidade e a personalidade dos indivíduos.
Ia esquecendo-me de contar a coincidência de dois fatos que me levaram a escrever este comentário. Na semana passada participei de painel, na reunião anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, em Vitória (ES), cujo tema era "Ética e clonagem humana", com Bernardo Beiguelman e Marcio Fabre dos Anjos, com a coordenação de Oswaldo Frota Pessoa. Na última terça-feira foram comemorados os cem anos do nascimento de Aldous Huxley, autor de "Admirável Mundo Novo", livro –cuja ação se passa na metade do terceiro milênio– no qual a clonagem é usada para criar seres "humanos" em laboratório, destinados a funções específicas. Huxley foi um visionário da clonagem, antecipando uma preocupação nossa que liga os dois fatos. Como tive oportunidade de lembrar em Vitória, há muito perigo potencial quando o homem quer brincar de deus.
A pesquisa científica só deve sofrer as limitações da ética. O uso dela, pode, além de aético, ser perigoso e inconveniente, como se viu –em tempos não muito distantes– com as proclamações eugênicas de Adolf Hitler.
Sob o ângulo do direito, vale a pena lembrar Jellinek, pensador deste século, nascido judeu e convertido ao catolicismo, para quem o direito define o mínimo ético e não mais que o mínimo. Não satisfeito o mínimo ético com a clonagem, é imprescindível a maior severidade na apreciação do tema, pois o direito destina-se à realização da justiça, inspiradora das regras jurídicas segundo as quais os seres humanos devem agir.
Huxley, naquela que considero sua obra prima ("Sem olhos em Gaza"), refere a unidade da vida, para (em tradução livre) dizer: "cada organismo é sem igual. Sem igual e, ainda assim, unido a todos os outros organismos, na semelhança de suas partes fundamentais; sem igual por sobre o substrato de sua identidade física". A clonagem humana, que ele imaginou, criaria organismos iguais, de identidade psíquica absoluta e desumana, contrária à natureza, caminhando para a destruição do próprio homem.

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