São Paulo, domingo, 31 de julho de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Recuperar competência técnica para o setor público

ANTONIO KANDIR

Das muitas iniciativas de que depende o êxito do próximo presidente, a reconstrução do governo, de sua capacidade de formular e executar políticas, está certamente entre as mais importantes. É ledo engano imaginar que o país possa inserir-se de modo competitivo na economia mundial e superar o atraso social sem uma política ativa e consistente de reconstrução da burocracia pública.
Assim como as empresas, o Estado precisa de quadros competentes para ajustar-se às mudanças que vêm ocorrendo na economia e na sociedade, no âmbito interno e mundial. Precisa de uma elite dirigente e quadros médios capazes de transformar em realidade diretrizes e decisões de governo.
Sem o que continuará a existir grande desproporção entre, de um lado, a capacidade –dispersa em várias instituições sociais– de compreender os problemas nacionais e formular soluções e, de outro, a capacidade de implementar políticas de governo realmente capazes de resolver esses problemas.
Há nessa empreitada duas frentes de luta. Uma propriamente ideológica e outra política. Na frente ideológica, trata-se de derrubar o mito de que haveria oposição entre o fortalecimento da burocracia pública e o fortalecimento da iniciativa privada, entre o fortalecimento do governo e o fortalecimento da empresa privada.
Para mostrar o engano dessa oposição, nada que recorrer aos Estados Unidos, cujas credenciais democráticas e liberais ninguém há de negar. Para ficar só num exemplo, lembro que a posição das empresas norte-americanas no mercado mundial deve muito à grande competência técnica do USTR (United States Trade Representative), agência responsável pela defesa dos interesses dos EUA no comércio internacional.
Na frente política, os inimigos são dois: os interesses fisiológicos e predatórios dos segmentos atrasados da elite política e empresarial e os interesses corporativos incrustados no setor público. Tanto para uns como para outros, a reconstrução da burocracia pública significa perda de poder, de acesso privilegiado, direto ou indireto, a recursos públicos.
Para que não vá pela contramão e esteja ajustada à democracia, a reconstrução da burocracia pública deve partir de duas constatações básicas: o colapso irremediável das grandes organizações burocráticas em todo o mundo e a necessidade urgente de refazer o pacto federativo no Brasil, descentralizando o mais possível as atividades de governo, em particular na área social.
A devida compreensão desses dois fenômenos tem implicações práticas muito concretas. Não faz mais o menor sentido a existência de megaburocracias no governo federal.
Assumindo predominantemente funções de planejamento, coordenação e controle, transferindo a execução de políticas para Estados e municípios (a não ser no caso das políticas de cunho necessariamente nacional, com a política econômica, a política externa etc.), os órgãos do governo federal devem perder o caráter de grandes máquinas de repasse de recursos, para se transformar em agências altamente capacitadas para executar suas novas funções, dentre as quais o apoio temporário, condicionado a metas, a Estados e municípios com deficiências técnicas e/ou insuficiente capacidade arrecadatória.
A descentralização radical é, assim, a melhor maneira de fortalecer a União. Mais que isso, é a única maneira de reduzir significativamente os níveis elevadíssimos de desperdício do dinheiro público e melhorar a qualidade do gasto público.
Para pôr em marcha o longo e penoso processo de reconstrução da burocracia pública, nos vários níveis de governo, é preciso haver lideranças nacionais e regionais com capacidade para entender o sentido das mudanças do mundo contemporâneo, com coragem para enfrentar os interesses fisiológicos e corporativos e dispostas a comandar mudanças profundas nas estruturas do Estado.

Texto Anterior: Mensalidades escolares; Taxa de pavimentação; Remuneração salarial; Prorrogação de benefício; Desconto salarial; Transferência de domicílio; Licenciamento de veículos
Próximo Texto: O programa que mudou o Brasil - 8
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.