São Paulo, domingo, 31 de julho de 1994
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O programa que mudou o Brasil - 8

LUÍS NASSIF

Poucas vezes na história do país um episódio revelou tão profundamente o poder transformador das idéias e foi tão elucidativo acerca dos malefícios que as igrejinhas acadêmicas e a politização da discussão econômica causaram ao país, do que o que ocorreu com a teoria da "integração competitiva".
O economista Júlio Mourão –pai da "integração"– começou a formular suas idéias a partir de 1983, quando assumiu o departamento de planejamento do BNDES.
Em 1984, planejou um seminário visando discutir as conclusões do trabalho. Para assessorar na organização foi contratado Eduardo Marques, da Comissão Nacional de Energia Nuclear.
Foi Marques quem convenceu Mourão a trabalhar com o conceito de Cenário, utilizando o método de Michel Godet, economista francês de quem fora aluno, que trabalhava na identificação de estratégias que permitissem atuar de maneira positiva na busca do cenário adequado –em vez de se limitar a olhar passivamente o horizonte.
Desde os anos 50, o país esbarrava em estrangulamentos no balanço de pagamentos. Bastava crescer para ocorrerem problemas cambiais.
No início de 1984, em plena crise da dívida externa, Mourão sustentava que o Brasil já fizera sua travessia. Naquele ano, dizia ele, conseguiria obter um superávit comercial superior a US$ 12 bilhões e ter crescimento positivo do PIB.
Com base nessas previsões, o Cenário trabalhava com duas alternativas. A primeira, era de continuidade do ajustamento acertado com o FMI, com todos os ingredientes recessivos envolvidos. A segunda, otimista, era a da retomada do desenvolvimento, possível em função das mudanças estruturais ocorridas.
O boicote dos novos cardeais acadêmicos começou aí.
Para uns, a aceitação dessa nova realidade implicaria abrir mão da retórica da moratória da dívida externa, que garantia seu ganha-pão político. Para outros, significaria reduzir as sucessivas trocas de moeda à sua real dimensão: insignificante, dentro do processo histórico de um país. Para ambos, significaria um corte definitivo no padrão oligárquico e centralizador do Estado brasileiro, que garantia sua influência sobre a economia.
Trabalho solitário
Técnicos da Eletrobrás e da Petrobás que participaram da revisão do Cenário recusaram-se a assinar o documento final, que propunha abertura da economia, privatização e desregulamentação. Isolado da academia e da burocracia pública, Mourão pôs-se a viajar pelo Brasil e pelo mundo, defendendo suas idéias, deixando marcas indeléveis por onde passou.
Depois de suas palestras, o BIRD e o Banco Mundial mudaram sua concepção em relação à crise brasileira e passaram a oferecer financiamentos não mais condicionados a práticas recessivas, mas à modernização institucional e à abertura do mercado.
Sua pregação junto a setores do governo permitiu os primeiros ensaios de abertura, ainda no governo Sarney. E foram seus discípulos que comandaram a abertura no governo Collor.
Escanteio
Enquanto suas idéias se tornavam vencedoras, Mourão viveu no governo Collor seu período de maior ostracismo.
Não aceitou nenhum cargo no governo. O novo presidente do BNDES, Eduardo Modiano, da PUC-RJ, não só não ignorava sua importância, como temia-a. Tanto que demitiu-o da Superintendência de Planejamento sem ter tido a coragem de comunicar-lhe pessoalmente, desmanchou sua equipe e praticamente proibiu o debate interno sobre suas idéias.
Só o procurou tempos depois, quando o secretário de Assuntos Especiais, Eliezer Baptista, resolveu preparar o macroplanejamento do país –uma idéia esplendorosa que, infelizmente, não resistiu ao impeachment de Collor– e convocou Mourão para sua equipe.
Com medo de perder poderes, Modiano chamou Mourão e, numa atitude mesquinha, comunicou-lhe que, como o financiamento do projeto seria bancado pelo BNDES, ele iria para lá, mas na qualidade de representante do banco.
Joio e trigo
O último presidente do banco a conviver com Mourão foi Pérsio Arida, autor do Cruzado e do Real. Mourão estava prestes a se aposentar. Pérsio encontrou-o no elevador, disse que precisava falar com ele, e morreu por aí.
Não poderia haver nada mais simbólico de uma era irracional.
De um lado, o intelectual nacionalmente conhecido, estrela maior da elite acadêmica engajada, que dispôs de todas as facilidades do mundo para exercitar seus experimentos –porque os experimentos interessavam eleitoralmente aos donos do poder. Do outro, o servidor público, que enfrentou o mundo armado apenas de suas convicções.
Se perguntar hoje, a quem assistiu o encontro, qual dos dois mudou o país com suas idéias, ninguém acreditaria que foi o técnico humilde, que preparava-se para solicitar sua aposentadoria.
Daqui a alguns anos, quem se debruçar sobre esses tempos loucos não conseguirá entender como tantos puderam ser tão cegos e irracionais, tão sem critério durantes tantos anos.

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