São Paulo, domingo, 31 de julho de 1994
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Almodóvar Voyeur do Mundo

FERNANDA SCALZO
DA REPORTAGEM LOCAL

Almodóvar Voyuer do Mundo O diretor fala sobre a solidão, a TV e 'Kika', seu novo filme que estréia em agosto no Brasil
(continuação)
Folha - Em sua espontaneidade e sua ingenuidade, Kika se parece com Ricki, o personagem de Antonio Banderas em "Ata-me!". Ainda que tenham histórias bizarras, seus heróis trazem sempre uma aura de pureza e otimismo. Esse é um ideal humano seu?
Pedro Almodóvar - Para mim o otimismo, a vitalidade, ter uma grande disposição para viver, são qualidades imprescindíveis para sobreviver à crescente hostilidade que nos rodeia. Nos caso de Ricki e Kika, eles são também bastante ingênuos e inconscientes, como se não tivessem abandonado totalmente a infância.
É o que permite a eles se levantarem cada dia com entusiasmo e não perderem a ilusão de viver. Eu gostaria de ser assim, mas temo que não seja nem tão inocente nem tão inconsciente como eles.
Folha - Através da personagem Andréa Caracortada, você faz uma crítica aos "reality shows" da TV. Você acha que essa exploração em imagens da miséria humana é imposta às pessoas ou que a TV simplesmente mostra o que o espectador quer ver?
Almodóvar - É difícil falar em responsabilidade em termos absolutos. Desde já, a concorrência selvagem em que vivem as redes de TV fez com que se perdesse de vista os limites da moral mais básica, mais humana. E, por isso, as TVs são totalmente responsáveis.
Elas criaram esse mercado de dor onde as pessoas vendem suas tragédias. Se você tira ou rouba do ser humano a dor, não lhe sobra mais nada. A lei da oferta e da procura não é nenhuma desculpa.
Mas também é preciso considerar que a sociedade contemporânea é cada dia mais voyeurista e menos solidária. E a televisão não pode ser culpada por isso.
Folha - A que você atribui essa morbidez que parece seduzir as pessoas hoje?
Almodóvar - A vida (me refiro à das grandes cidades) se simplificou muito. Há muito pouco tempo livre. Cada vez temos menos oportunidades para desenvolver e cultivar nossas relações familiares, de amizade ou amorosas. O pouco tempo que nos resta nos ocupamos sentados na frente da televisão engolindo o que puserem.
Na contemplação das tragédias alheias, além de ser mórbida, há algo de vingança implícita. Tem que se levar em conta também o incrível exibicionismo dos personagens que se prestam a aparecer nesse tipo de programa. Os valores se distorceram tanto que as pessoas pensam que o mero fato de aparecer na TV, ainda que seja para mostrar suas misérias, lhes dá alguma importância. Isso é efeito da má interpretação que se faz da fama e do sucesso.
Folha - Antes de ser apresentadora de TV, a personagem Andréa Caracortada era psicóloga. Existe nisso uma crítica à maneira como os psicólogos vêem as pessoas?
Almodóvar - Não é exatamente uma crítica. De um lado, minha intenção era mostrar que hoje todas as profissões se desenvolvem no meio televisivo. Médicos, esportistas, arquitetos, cozinheiros, curandeiros, todo mundo tem seu programa de televisão. Por que não uma psicóloga?
No caso de Andréa, isso também faz parte do desenvolvimento de seu personagem. Ela sempre foi fascinada pelo mal, pelos psicopatas. Chega um momento em que para ela já não basta ouvi-los falar. Quer ficar mais perto, que o sangue espirre nela, se possível.
Folha - Você já fez psicanálise? O que acha?
Almodóvar - Nunca me psicanalisei. Para mim basta escrever e dirigir filmes. São a melhor terapia. Reconheço que tenho algumas reservas a respeito. Mas tudo depende das mãos em que você cair.
Parece-me razoável que as pessoas com problemas busquem ajuda especializada. Mas na profissão de psicólogo há muito }intrusismo. O ideal seria que cada um solucionasse seus problemas por si mesmo. Olhando-se no espelho e reconhecendo o que vê. Ainda que não goste.
Folha - Em cenas tão difíceis como a do estupro de Kika, o que você guarda na cabeça para não cair no grotesco ou na comédia total, para conseguir se manter num limite justo?
Almodóvar - Não há regras para manter o equilíbrio em sequências tão extremas e arriscadas como a do estupro. A medida é algo que você tem dentro de você. E só é possível à base de muito rigor, muito trabalho com os atores, ter as idéias claras, ser honesto, sincero e não ter medo do risco.
Folha - Nos EUA, "Kika" foi proibido para os menores de 16 anos. Não é a primeira vez que você tem problemas com a censura americana. O que você acha que os incomoda mais em seus filmes?
Almodóvar - Como todas as censuras, a americana é um sintoma de debilidade e hipocrisia. Os filmes americanos (com exceções) se parecem cada vez menos com a vida americana. E quando isso acontece, como no caso de "Short Cuts", de Robert Altman, eles não gostam de assistir.
O cinema americano é cada dia menos adulto. É quase exclusivamente pensado para o espectador infantil. Eles têm um medo traumático de tudo que se relacione com o sexo. O fato de dois seres humanos demonstrarem seus sentimentos de um modo físico os deixa muito nervosos.
Entretanto, na televisão, todo mundo, incluídas as crianças, podem ver as coisas mais espantosas sem que isso pareça preocupar ninguém. Puro puritanismo, hipocrisia e quase demência.
Folha - Você disse ao jornalista Frédéric Strauss no livro "Pedro Almodóvar" que o que se passa hoje com você na Espanha "parece um linchamento". Por que os espanhóis não aceitam agora o seu sucesso?
Almodóvar - Não falava dos espanhóis, mas dos críticos. Os espanhóis continuam indo massivamente ver meus filmes. Mas a inveja, em todo caso, é nosso esporte nacional. Se fizessem um Campeonato Nacional da Inveja, é muito provável que levássemos algum prêmio.
Folha - Você declarou uma vez que gostaria de morar num país de Terceiro Mundo. O Brasil, talvez?
Almodóvar - O Brasil me interessa. Só estive cinco dias no Rio e fiquei muito impressionado. Não sei onde vou viver no futuro. Mas o Brasil não é uma má idéia.
Mas sou muito sensível à injustiça social e as notícias que leio sobre o Brasil me deixam às vezes arrepiado. Mas vocês têm uma cultura tão excessiva e tão barroca que me apaixona. Tenho certeza que me inspiraria muito.
Folha - Quando assisti "Kika" tive a sensação de que esse filme não poderia ser feito aqui. Sobretudo porque a realidade dos "reality shows" no Brasil é bem mais dura, já que ela acrescenta à miséria humana a miséria material. O que você acha?
Almodóvar - Acho que você tem razão. Se eu vivesse no Brasil, faria um cinema mais radical e mais escandaloso do que o que eu faço hoje.
Folha - É verdade que você decidiu fazer filmes mais baratos para se sentir mais livre?
Almodóvar - Sim. Cada vez tenho mais medo dos grandes orçamentos. Para mim a "liberdade de ação" é meu maior luxo e minha ambição máxima. Sou tudo menos um diretor megalômano.
Folha - Almodóvar é hoje quase uma marca registrada. Não somente você faz filmes muito pessoais, mas tem prestígio no mundo todo. Isso te incomoda ou você se sente à vontade?
Almodóvar - A natureza do cinema é ser visto. Quanto mais pessoas assistam a meus filmes, melhor. Mas sinto a pressão do mercado, não na hora de escrever ou dirigir, mas quando o filme está terminado. Por outro lado, o fato de me ter tornado uma pessoa tão popular me dá muitas possibilidades de observar a vida dos outros.
O sucesso é importante e necessário, para continuar trabalhando, mas a fama é uma bobagem. Um estorvo. Qualquer pessoa pode ser famosa sem que isso esteja baseado em seu trabalho. Eu odeio a popularidade. Tenho direito a ser um indivíduo anônimo e viver como tal. Ou deveria ter esse direito.
Folha - Qual vai ser o tema de seu próximo filme? Será rodado na Espanha?
Almodóvar - É muito provável que seja feito na Espanha. Já terminei um roteiro e estou escrevendo outro. Mas gostaria de esperar um pouco antes de falar deles.
Folha - Você assistiu "Filadélfia"? Acha que Jonathan Demme se saiu bem ou mal ao tratar um tema difícil como a Aids?
Almodóvar - Acho que Jonathan Demme (diretor que admiro e que é meu amigo) foi vítima do modo como os estúdios de Hollywood tratam determinados temas, como o homossexualismo e a Aids. É como se dissessem: "Vamos falar de um personagem homossexual, mas sem que pareça homossexual".
O papel de Tom Hanks poderia perfeitamente, segundo o roteiro, ser o de um hemofílico. Não é culpa de Demme, que dirigiu brilhantemente o filme, mas do roteiro e das pressões que os estúdios devem ter imposto.

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