São Paulo, quarta-feira, 10 de agosto de 1994
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Lobisomem aproxima o homem do mal

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Com uma infinidade de outros filmes, "Lobo" começa com a vista panorâmica de uma estrada, onde um carro faz curvas e curvas enquanto os créditos aparecem na tela.
Logo depois, vemos o carro de frente, o pára-brisa ligado para limpar a neve que cai, alguém desembaçando o vidro, até que aparece o rosto, claro, de Jack Nicholson. A platéia quase emite um "ah!" de reconhecimento.
Desde "Um Estranho no Ninho", de 1975, passando por "O Iluminado", de Stanley Kubrick, Nicholson especializa-se no papel de louco, de demente, de alucinado. Seu rosto, numa mistura de charme e malevolência, feita de sorriso sedutor e de sobrancelhas diabólicas (foi o próprio demônio em "As Bruxas de Eastwick"), praticamente refuta as idéias sobre a interpretação cinematográfica convencional.
Ainda que Nicholson atue bem, "interprete" otimamente o seu papel, é como se não precisasse disso. Ele está se transformando numa espécie de Marlon Brando, cuja simples aparição num filme, sem fazer nada, já é garantia de público.
Assim, desde as primeiras cenas o interesse todo do espectador se volta para o rosto de Jack Nicholson. A quantidade de closes é enorme, ainda mais porque o assunto –a transformação de um pacato editor de livros em lobisomem– exige atenção aos detalhes fisionômicos.
Dois outros atores de peso participam de "Lobo": Michelle Pfeiffer e James Spader.
Tenho a sensação de que Michelle Pfeiffer ainda está à procura de seu papel. Como vítima chorosa, ela funcionava em "As Relações Perigosas"; funcionou também como Mulher Gato em "Batman 2"; não estava bonita como Madame Olenska, em "A Época da Inocência".
Os diretores parecem ter certo prazer em enfeiá-la, ou melhor, em fazê-la "comum", usando jeans e tênis. Mas isso daria certo se ela fosse mais sofisticada do que é. Não que não seja sofisticada ou bonita. Mas uma Audrey Hepbrun "enfeiada", ou uma Nastassja Kinsky, preservam sempre o mistério, a graça originais. A sofisticação de Pfeiffer é mais imaginária do que real, e quando se pretende vulgarizá-la, ela corresponde bem demais ao objetivo.
No caso de "Lobo", ela é para ser uma moça rica e inteligente, apaixonando-se por Jack Nicholson à medida em que este vai liberando seus charmes animais. Mas sua presença no enredo está a um passo da banalidade.
James Spader é outra questão. Faz o papel do rival hipócrita e canalha de Nicholson na firma em que ambos trabalham. Seu trabalho como ator é virtuosíssimo, excelente. Pois tem de dar conta de um problema complexo. Faz o papel de uma pessoa que, sendo fingida, falsa, "representa mal", não convence, é hipócrita.
Finge ser amigo de Nicholson, mas é um traidor. Para James Spader, trata-se de, conforme a idéia do roteiro, ser "mau ator" na trama filmada. E é preciso ser excelente ator para transmitir essa imagem de canastrão.
Demorei-me um pouco na análise dos atores de "Lobo" porque, sem dúvida, este é um dos maiores charmes do filme. Com toda razão, Sérgio Augusto elogiou a primeira metade de "Lobo", feita de diálogos inteligentes, conflitos interessantes, e pichou a segunda metade, quando Nicholson vira de fato um lobisomem, e tudo se resume a um corre-corre adolescente, a um histérico de terror meio bobo.
O fracasso de "Lobo" está no fato de ter querido ser inteligente demais no começo, e de corrigir-se para padrões de consumo hollywoodiano na parte final.
É como se o filme negasse, então, o talento e o rosto dos atores, que vão se cobrindo de maquiagens sensacionais. É como se o filme fosse ficando mais estúpido, como se animalizasse a si mesmo.
Dois temas secretos mobilizam, entretanto, essa fita comercial. Hesitantemente comercial, aliás –pois investe no poder de seus atores, o que dá boa bilheteria, e no poder dos efeitos especiais, que também dá boa bilheteria, mas contradiz o primeiro aspecto.
Os dois temas são bem contemporâneos. Refiro-me ao problema das drogas e ao problema da contaminação.
Não está explícita, e talvez nem seja intencional, a relação entre o consumo de drogas e a história do lobisomem. Mas vejamos.
Jack Nicholson é um sujeito careta, culto, trabalha numa editora, é refinado, gentil e submisso. Mordido por um lobo, começa a experimentar uma invejável expansão da personalidade e uma ainda mais invejável expansão de suas capacidades físicas.
Como lobo virtual, seu olfato e sua visão se tornam incrivelmente agudos. Torna-se mais inteligente e agressivo. Seus desejos sexuais não conhecem inibição ou dúvida. Sua força aumenta.
A ponto de alguém perguntar-lhe, no escritório, se está tomando algum remédio ou droga. A idéia é bem essa. São conhecidos os relatos de quem, experimentando coca, heroína ou LSD, sente-se "maior", "expandido", mais atilado. Dá vontade de ser lobisomem.
Mas logo se notam, como nas drogas, os efeitos indesejáveis. Nicholson não consegue controlar-se. Tem de ser amarrado para não sair mordendo gente por aí. Nas noites de lua cheia, quando sua pulsão animal é mais forte do que nunca, sofre daquilo que os especialistas em drogas chamam de síndrome de abstinência: urra de dor, debate-se, sofre, à medida que o impedem de entregar-se aos prazeres da licantropia.
O tema da contaminação também está presente. Cada mordida de lobisomem numa pessoa humana torna essa pessoa também um lobisomem. O que parecia droga perigosa é também um vírus, como o da Aids.
Claro que temas como esses estão presentes na tradição de terror antes de ter aparecido a Aids: o vampiro, como se sabe, transmite vampirismo às vítimas.
A ligação entre peste e droga, prazer e desgraça, aparece contudo com bastante clareza, a meu ver, em "Lobo". Está também presente, é óbvio, a idéia de que falta selvageria ao homem civilizado; de que um editor culto e de boas maneiras é, de certo modo, um animal frustrado, uma aberração da natureza. Ou ainda a idéia de que, no mundo ocidental e capitalista, alguma dose de selvageria é essencial para o sucesso no trabalho e no amor.
Não vou contar o final do filme, que aliás foi alterado à última hora por pressões da produtora. Digo apenas que endossa o último parágrafo, e de certo modo desmente, com inércia, a identificação entre o complexo lobisomem/drogas/ Aids com o mal.
É que, entregando-se às banalidades do filme de terror e à convenção do "happy end", "Lobo", foi vítima de uma peste também: a da infantilidade, do sensacionalismo, da mania de efeitos especiais que toma conta do cinema americano.

Filme: Lobo (EUA, 1994)
Direção: Mike Nichols
Elenco: Jack Nicholson, Michelle Pfeiffer, James Spader
Cinemas: Gazeta, Liberty, Iguatemi

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