São Paulo, quinta-feira, 11 de agosto de 1994
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Um país saudável

JANIO DE FREITAS

Numerosos hospitais já estão deixando de atender, por falta de pagamento dos atrasados devidos pelo governo. Para salvar a moeda, o governo precisa evitar gastos. É irrelevante, pois, que para alcançar tão nobre objetivo deixe de salvar vidas.
Os repasses de verbas para o Sistema Unificado de Saúde estão sendo feitos com três meses de atraso. É o mesmo atraso da Fazenda nos repasses de verbas para o Ministério da Saúde. Sob orientação da equipe econômica, o burocrata Sérgio Cutolo, que tem o título de ministro da Previdência Social, providenciou a suspensão do repasse das verbas devidas pelo seu ministério para aplicação pelo da Saúde.
Ao assumirem os pais do real, um deles agora transformado em filho eleitoral daquilo de que era pai, encontraram no Orçamento para 93 a dotação de US$ 12,8 bilhões para o Ministério da Saúde. Não lhes importou que a inflação subisse, sob seu comando, de 26% para 43% na chegada da URV e 51% na entrada do real. Não lhes importou o quanto os juros da dívida do governo, mantidos na alturas, transferiram recursos governamentais para os cofres dos lucros fáceis da ciranda financeira. Importou-lhes a verba orçamentária para Educação e Saúde.
Dos US$ 12,8 bilhões para a Saúde, em 93 só foram liberados pela Fazenda 57%, quase a metade do previsto. A Saúde só recebeu US$ 7,3 bilhões. Mas para os juros saíram dos cofres públicos US$ 11,8 bilhões. Mais 60% do que para a Saúde, neste país doentio pelo desemprego, pela aposentadoria ofensiva, pela falta de saneamento, pelos salários regulados por um salário mínimo genocida e pelo custo assaltante dos remédios e dos tratamentos particulares.
Na ótica da equipe real, o Brasil é um país habitado pelo poder econômico e pela moeda. A saúde dos que representam o poder econômico está naturalmente bem protegida. E agora temos a saúde da moeda. Somos, afinal, um país saudável.
Por isso mesmo, ao elaborar o Orçamento para 94, a equipe real teve o cuidado de tornar as verbas para a Saúde ainda menores. Cortando-lhes 17%, reduziu os US$ 12,8 de 93 para US$ 10,6 neste ano. Fez muito bem, porque, a exemplo de 93, a verba orçamentária da Saúde não vale, mesmo, na hora da liberação para uso em socorro do populacho. Dinheiro público é para os juros que mais enriquecem a ciranda financeira.
Solução rápida
Posta em dúvida a ética da equipe econômica –e ficar só na dúvida foi uma gentileza do presidente, não a grosseria que comentaristas lhe atribuíram– logo apareceram recursos para um acordo de correção parcial dos vencimentos do funcionalismo. Acordo dado como satisfatório pelos militares e pela Fazenda, que considerou preservadas as conveniências do real.
A disparidade entre as correções para civis e militares, cabendo aos primeiros 14,28% em duas vezes e aos segundos 35% em quatro vezes, faz lembrar o artigo 37 da Constituição: "A revisão geral da remuneração dos servidores públicos, sem distinção de índices entre os servidores públicos civis e militares, far-se-á sempre na mesma data" para uns e outros. Uma explicação mais ampla para a disparidade de 145% pode ser encontrada no livro "Rumor de Sabres", de Jorge Zaverucha, publicado há poucos meses pela Ática.
O trabalho contém alguns equívocos e suas conclusões, como a maneira de estabelecê-las, são pelo menos polêmicas. Mas dedica-se à comparação entre as transições da ditadura para o regime de instituições formalmente democráticas, na Espanha, na Argentina e no Brasil. E nisto ajuda a entender a diferença, entre as três transições, do poder preservado pelos militares. Não preciso dizer onde este poder está muito acima dos outros.

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