São Paulo, sábado, 13 de agosto de 1994
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A sombra do senador

JOSUÉ MACHADO

Um comentarista político escreveu um dia destes sobre a trajetória retilínea do símbolo do pefelê, o senador Marco Maciel. Analisou-a desde os tempos de Costa e Silva, que apoiou todos os outros governos seguintes, até o de F. Collor, de que foi líder no Senado. Ao chegar aos tempos do processo de impeachment, o senador afastou-se da liderança não se sabe por quê. Sobre essa fase, escreveu o comentarista que "em certas sessões o senador entrava e saía do Congresso como sombra".
Houve um engano. Não do senador, que jamais se enganou, segundo disse, mas do comentarista, e apenas no texto. Quem sabe nem tenha havido engano e sim a certeza de que é preferível ser conciso e que se dane a gramática. Mas o comentarista teria escrito melhor algo como "o senador entrava no Congresso como sombra e saía da mesma forma".
Talvez assim a frase seja de fato menos incisiva, mas respeita a regência dos verbos entrar e sair. Isso, claro, se o comentarista estivesse preocupado em escrever de acordo com as normas indiscutíveis da língua, porque tais verbos têm regência diferente: entrar em e sair de.
Há autores liberais, no entanto, que admitem como correta a forma "entrar e sair de", considerando implícito o lugar de entrada. No caso, "o senador entrava (no Congresso) e saía do Congresso como sombra". Defendem também a correção de frases: "Assisti e gostei do jogo" e "Olhei e simpatizei com Raimunda".
Coisa feia. Não a Raimunda, boa a rima e talvez boa solução, mas a mistura de regências. Parece coalizão do PSDB com o pefelê. Assiste-se ao jogo e gosta-se do jogo, olha-se Raimunda e simpatiza-se com Raimunda. Claro, portanto, que são preferíveis as formas em que não está implícita ao mesmo tempo a sombra da ignorância.
"Assisti ao jogo e gostei dele." Frase um tanto formal, na verdade. Por que não apenas "gostei do jogo"? Se o técnico não for o Zagalo, e o torcedor gostou do jogo de muitos gols, sinal de que o viu. Ou, como diria um purista, sinal de que assistiu a ele, e não é preciso dizer o óbvio. Boa coisa é fundir correção com coloquialismo, para que não se instale a sombra do preciosismo, diria o Conselheiro Acácio com sua bengala.
Quanto à boa rima, "Olhei Raimunda e simpatizei com ela". Claro que o poeta conciso poderia dizer apenas "Simpatizei com Raimunda", porque terá olhado para ela antes que nascesse o amor. Mas talvez queira dizer que a simpatia nasceu com o primeiro olhar.
O que em Raimunda terá despertado tanta simpatia do poeta bom de rima?

JOSUÉ R.S. MACHADO é jornalista, formado em Línguas Neolatinas pela PUC-SP. Colaborou em diversos jornais e revistas.

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