São Paulo, sábado, 13 de agosto de 1994
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Niilismo de 'Merlin' perdeu para a história

NELSON DE SÁ
DA REPORTAGEM LOCAL

"Merlin" ou "A Terra Deserta" é bem uma peça de seu tempo. Uma história de nossa época, como disse o autor, Tankred Dorst, à época em que escreveu. Infelizmente ou felizmente, a sua época passou. Escrita treze anos atrás, foi vencida pela velocidade da história, como quase tudo, desde então. Fracasso das utopias, falta de fé, niilismo, tudo vai ficando para trás, vai soando antigo, passado.
"Merlin", sem tirar nem pôr, conta as aventuras do rei Artur, de Merlin, seu mentor e feiticeiro, e dos cavaleiros da Távola Redonda. Segue a trama conhecida, do romance juvenil, tomando-a por alegoria disso tudo, do fracasso das utopias etc.
Traduzida no Brasil pouco depois de ser lançada na Alemanha, aliás, uma Alemanha ainda dividida, na época, a peça virou referência para toda a geração de diretores surgida na última década. Esteve para ser montada por vários. Carmen Paternostro é a primeira. Mas o que deveria ser revelação tornou-se déjà vu.
Verdades como "a história contradiz a utopia", ditas por Merlin, já foram ditas demais, em relação à utopia de democracia social dos dois últimos séculos, os séculos modernos. A idéia de que "os fundadores de novas ordens ao fim e ao cabo levam todos ao inferno" também tornou-se lugar-comum. E renegar a "idéia de fraternidade" e de "igualdade", como morta, servindo apenas de lembrança, é de um cinismo bem próprio da década perdida, e sem muito lugar hoje, quando se quer, quando se anseia acreditar em alguma coisa.
Que ningúem pense, com isso, que "Merlin" seja uma peça incapaz de provocar, de confundir, no sentido do diálogo. Ela usa sinuosamente, com riqueza que não é comum, o confronto permanente entre sonho e realidade, ainda que acabe por vaticinar, contraditoriamente, que um deles sai vencedor. Ao lado da trama original, é o confronto que prende o público, no que toca ao texto de Dorst.
Mas "Merlin" ou "A Terra Deserta", é claro, tem muito mais do que o texto, nas mãos de Carmen Paternostro. A diretora, que foi quem trouxe para São Paulo e revelou uma das maiores atrizes do teatro nacional, Bete Coelho, volta com uma ambiciosa companhia que criou ou recriou em Salvador, o grupo Intercena.
Sua versão da peça não tem medo algum de fazer rir, de escorregar na comédia mais popular. Não está ali para alongar-se em achados formais ou em técnicas de dança-teatro, em detrimento do enredo e do conteúdo. Tudo é reunido harmoniosamente. Exemplo é o cenário, de telas recortadas em que se integram beleza, funcionalidade e expressão. Uma opção clara pela comunicação, pelo entendimento que conflita com o discurso niilista do autor.
Uma opção clara, que também chegou ao texto final usado na montagem. Com três horas e meia de espetáculo –em vez das oito horas que, ao que se diz, seria o resultado com o texto completo– ele é adaptado em muitas partes, escancaradamente abrasileirado. Citações à atualidade do país estão em toda parte. Por exemplo, ao brincar com a troca da moeda, do cruzeiro para o real.
Tudo isso, mais a interpretação descompromissada e envolvente de Merlin por Lúcio Tranchesi, como um espírito selvagem, quase um Macunaíma, tornam "Merlin" um espetáculo valioso, raro, que mereceria e sustentaria muito mais do que a curta temporada que acaba amanhã, em São Paulo.

Título: Merlin ou A Terra Deserta
Autor: Tankred Dorst e Ursula Ehler
Direção: Carmen Paternostro
Elenco: Lúcio Tranchesi, Geraldo Moniz de Aragão, Yulo Cézar e outros
Quando: Hoje, às 20h30; amanhã, às 19h30
Onde: Teatro Sérgio Cardoso (r. Rui Barbosa, 153, tel. 288-0136)
Quanto: R$ 9,00

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