São Paulo, sábado, 13 de agosto de 1994
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Um passo em falso

JOAQUIM FALCÃO

N ÃO
A lógica corporativatransformou o acessodo cidadão à Justiça emmonopólio dos advogados
O Estatuto da OAB é um retrocesso. Um passo em falso. Foi construído a partir de uma lógica corporativa, de uma visão tutelar e de um desconhecimento da história. Fácil perceber.
A lógica corporativa transformou o acesso dos cidadãos à Justiça no monopólio dos advogados. E no monopólio pago. O que contraria a Constituição de 88, que recusa este monopólio.
Não é razoável obrigar o consumidor a só ter acesso ao Juizado de Pequenas Causas para reclamar, por exemplo, da televisão que comprou com defeito, se antes contratar advogado. E pagar honorários. Não é razoável impedir o comerciante de usar o contrato social padrão, simples, prático e já impresso, sem antes contratar advogado. E pagar honorários.
Não é razoável dificultar os acordos na Justiça entre os cidadãos e o governo, porque o advogado do governo além do salário vai receber agora um percentual sobre causa ganha. E portanto não vai querer acordo nunca. Mesmo porque, se o governo perder, ele não perde nada. Tem o bônus, mas não tem o ônus.
O estatuto dá razão aos juízes, quando, em pesquisa do Idesp, apontaram como a segunda causa da morosidade da Justiça o interesse dos advogados!
Tudo justificado por uma visão tutelar e distorcida que vê os cidadãos como incapazes de defender sozinhos seus direitos. Que em algumas situações os advogados são imprescindíveis, é óbvio. Mas transformar os cidadãos em incapazes permanentes, é exagero.
Contraria inclusive tendência internacional que estimula uma Justiça onde o cidadão cada vez mais exerce sua autonomia. Onde implementar justiça é exercitar a cidadania madura e não a cidadania tutelada. Mais ainda.
Essa visão distorcida cria também duas classes de profissionais: os advogados e os outros. Os advogados são os únicos que vão poder no exercício de sua profissão difamar e injuriar, sem medo do Código Penal. Estarão impunes. Não poderão ser presos, mesmo no caso de crime inafiançável, sem a presença da OAB. E por aí vai.
Finalmente, o estatuto revela um profundo desconhecimento de nossa história. Os advogados têm sido os líderes da sociedade civil. O presidente do movimento Diretas-Já foi o ex-presidente da OAB, Mário Sérgio Duarte Garcia. Outro ex-presidente da entidade, Marcello Lavenere, foi um dos líderes do impeachment. Por motivo simples.
Na defesa do Estado de Direito democrático, os advogados conseguiram fazer coincidir os ideais da classe com os interesses dos cidadãos. Daí a legitimidade. Daí a liderança.
Agora pretende-se inverter a história, subjugar os ideais de justiça dos cidadãos aos interesses corporativos da classe. Não devemos jogar fora legitimidade tão arduamente conquistada.
Como os advogados vão defender os cidadãos contra os oligopólios se defendem seu monopólio? Como vão defender a liberdade sem tutelas, se exigem a tutela judicial? Como defender a igualdade, se são profissionais desiguais?
O estatuto é polêmico. Joga o advogado contra o cidadão. Não representa o pensamento de todos os advogados. Temos a certeza que a OAB vai rever sua posição.
Vai dar um passo atrás para continuar a andar para frente.

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