São Paulo, domingo, 14 de agosto de 1994
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Taxa de câmbio do real

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

A posição da taxa decâmbio do real éum dos pontosfracos do Plano Real
A intensa campanha de propaganda que cercou a introdução do real vem impedindo que a opinião pública tome plena consciência das vulnerabilidades do programa de estabilização em curso. Uma das mais graves é a acentuada valorização da taxa de câmbio, que poderá constituir-se em fonte de sérias dores de cabeça no médio prazo, a exemplo do que ocorreu em outras economias latino-americanas nos últimos anos.
Tanta é a falta de espírito crítico que um dos diretores do Banco Central, sem sofrer qualquer contestação, animou-se a negar a existência do problema, alegando que o câmbio estaria agora sendo determinado pelo mercado.
Vejamos o que dizem os números. Desde o início de 1992 até junho de 1994, a moeda brasileira já vinha apresentando uma tendência à valorização gradual em termos reais.
Nesse período de dois anos e meio, a taxa de câmbio bilateral com o dólar, deflacionada pelo diferencial de inflação entre o Brasil e os EUA, registrou apreciação de 7% ou 8%, tomando-se como deflatores o INPC ou o IPA-DI, respectivamente.
A relação câmbio-salário, estimada com base em dados da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) sobre salários no Estado de São Paulo, acusou deterioração ainda mais forte, de 29% entre janeiro de 1992 e junho de 1994.
Foi nesse contexto que se deu a valorização nominal de cerca de 10% na taxa de câmbio desde a introdução do real. Em consequência, a apreciação cambial acumulada desde o começo de 1992 alcançou agora em julho nada menos que 17% pelo IPA-DI e mais de 20% pelo INPC.
Uma valorização cambial dessa dimensão, embora significativa, não preocuparia tanto se houvesse a expectativa de revertê-la ou, pelo menos, estancá-la em prazo relativamente curto.
O problema é que o programa de estabilização em andamento aponta claramente na direção de um aprofundamento da "defasagem" cambial. Primeiro, porque a ligação do real com o dólar constitui uma das "âncoras" básicas do chamado Plano Real.
Segundo, porque a taxa de câmbio tem ficado bem abaixo da paridade unitária estabelecida como teto para a relação dólar-real e não dá sinais de que vá convergir para esse teto nos próximos meses.
Ora, a experiência nacional e internacional mostra de forma clara que programas de estabilização ancorados no câmbio, embora possam diminuir as taxas de inflação de forma significativa, nunca conseguem trazê-las de imediato para os níveis de inflação observados na moeda-âncora.
Essa foi, por exemplo, a experiência das moedas européias que se ancoraram no marco alemão nos anos 80 e até o início dos anos 90. A Argentina, depois do Plano Cavallo, demorou três anos para alcançar uma taxa de inflação próxima à dos EUA, acumulando durante esse período uma valorização real do câmbio que coloca em risco a sustentabilidade da posição externa da economia.
É pouco provável que o caso brasileiro venha a constituir uma exceção a essa regra. Admitindo-se que a inflação média em reais fique, por exemplo, em torno de 2,5% ao mês até o fim do ano, a valorização real acumulada seria da ordem de 20% a 25% no final de 1994, em comparação com o início de 1992, ainda que se admita a convergência da taxa cambial para a paridade unitária com o dólar. Se os salários nominais acompanharem o crescimento dos preços internos, a redução acumulada da relação câmbio-salário chegaria a 35% no mesmo período!
Ainda que se possa apontar com razão a existência de algumas circunstâncias atenuantes (fechamento antecipado de contratos de câmbio por parte dos exportadores, ganhos de produtividade na indústria brasileira, queda do dólar em relação a outras moedas etc.), parece inegável que a posição da taxa de câmbio do real representa um dos pontos fracos do Plano Real. A sua fragilidade no campo fiscal dificulta inclusive a compensação aos exportadores pelo lado tributário.
Ainda mais delicada é a posição dos setores que competem com importações no mercado interno. A combinação de uma forte valorização cambial com a diminuição das tarifas de importação e a supressão de barreiras não-tarifárias significará submeter a indústria e outros setores da economia brasileira a um grau nunca antes visto de exposição à concorrência internacional.
No que diz respeito ao balanço de pagamentos, as consequências da manutenção da atual política cambial são bastante previsíveis: o superávit comercial continuará caindo, o déficit da balança de serviços tenderá a aumentar e teremos, em consequência, desequilíbrios expressivos e crescentes no balanço de transações correntes.
Foi o que se viu em todos os países latino-americanos que optaram pela fixação do câmbio (ou outras modalidades de ancoragem cambial), em combinação com políticas de liberalização comercial.
Em diversas economias da América Latina, déficits elevados e provavelmente insustentáveis no balanço de pagamentos em transações correntes vêm produzindo uma forte dependência de fluxos de capital de curto prazo ou rapidamente reversíveis.
Essa tendência só não degenerou em novas crises cambiais porque predominou até agora uma conjuntura de liquidez relativamente farta nos mercados financeiros internacionais e –no caso especial do México– porque o Federal Reserve se dispôs a montar operações de socorro em momentos de maior dificuldade, como em 1988 e 1994.
Aqueles que acreditam que o Brasil é um caso à parte, por causa dos seus elevados superávits comerciais e da relativa solidez da sua posição de balanço de pagamentos em conta corrente, fariam bem em examinar com mais cuidado a experiência de alguns dos nossos vizinhos e registrar a impressionante velocidade com que se reverteram as posições de balanço de pagamentos após a fixação do câmbio nominal.
Tanto o México quanto a Argentina, por exemplo, que ostentavam superávits significativos em conta corrente no ano calendário imediatamente anterior ao início de seus programas de estabilização, passaram a conviver com déficits também significativos já no ano seguinte.
O México, que estabilizou a taxa de câmbio a partir de janeiro de 1988, passou de um superávit de US$ 4 bilhões em 1987 para um déficit de US$ 2,4 bilhões já em 1988.
A Argentina, que fixou o câmbio a partir de abril de 1991, passou de um superávit em conta corrente de US$ 1,9 bilhão em 1990 para um déficit de US$ 2,8 bilhões em 1991.
No período de 1991-93, esses dois países acumularam déficits totais em conta corrente de nada menos que US$ 58 bilhões e US$ 19 bilhões, respectivamente, financiados em grande medida por fluxos de capital de estabilidade duvidosa. É isso que passa por sucesso na América Latina!
Infelizmente, o Brasil parece estar indo pelo mesmo caminho, com a agravante de que, no nosso caso, o balanço de pagamentos em transações correntes já registra um pequeno déficit no ano calendário anterior ao início do processo de estabilização.
O mais preocupante é que nada disso vem sendo objeto de discussão e análise, pelo menos não com a seriedade que o assunto requer. Tudo indica que tende a prevalecer o clima de aceitação passiva e acrítica que se observou em "planos" anteriores e tanto contribuiu para o seu insucesso.

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