São Paulo, domingo, 14 de agosto de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Merleau rejeita a política de Sartre

Continuação da pág. 6-8

assim me senti no dia em que o vi decidir emigrar, no caso de uma invasão: resolvidos a emigrar, seríamos ainda mais pródigos em fazer justiça ao comunismo em nossos artigos e em exortar o público a bem medir o valor dele, justamente porque teríamos todas as garantias de evitar, nós, os seus inconvenientes.
Nosso desacordo atual é da mesma ordem: continuar a dizer-se não-comunista com a convicção de que, se a guerra não ocorrer, inevitavelmente virá a democracia popular, e que se deverá trabalhar nesse quadro, –"engolir" o marxismo, como mais ou menos você me dizia em abril– é já viver em espírito e escrever sob a democracia popular.
Nos dois casos, um futuro congelado, e mantido em segredo, orienta a atitude presente e lhe confere um certo caráter clandestino. Quando se é claro demais sobre o futuro, não se tem a mesma clareza quanto ao presente. Aqui não condeno, mas, respondendo à sua condenação, tenho todo o direito de dizer que há um passivo na sua atitude, tanto quanto na minha. Você tem uma facilidade em construir o futuro e em viver nele que é inteiramente sua. Eu tendo mais a viver no presente, deixando-o indeciso e aberto, como é de seu feitio. Não é que eu construa um futuro diferente (seria possível fazê-lo, e cada vez mais a ruptura da Europa com os Estados Unidos e a mudança da política comunista na Rússia e em outros lugares constituem coisas prováveis). Não é que eu seja um "homem revoltado" (15), menos ainda, um herói. Minha relação com o tempo se faz, sobretudo, pelo presente, isso é tudo. Não tenho a menor intenção de impô-la a você. Afirmo, apenas, que ela tem seu valor próprio, e não admito que seja reduzida a uma falta.
Quanto à relação com o mundo "objetivo" e com a história, que você erige em critério único, ela não me serviu tão mal. Não me vanglorio muito disso: eu não podia prever nem a morte de Stálin, nem as suas consequências, e foi um pouco por acaso que meu estar-aí acertou. Você, pelo menos, deveria reconhecer que não era tão errado colocar entre parênteses o período que se iniciou com a Guerra da Coréia, e que se fecha atualmente, e que o seu estar-aí, ao contrário, lhe pregou uma peça bastante ruim.
Ele não deixou você prestar a devida atenção a todo um lado das coisas: desde março (16) passado, os "Temps Modernes" não sopraram uma única palavra sobre a nova política da União Soviética –"Os comunistas e a paz" (17) aborda o problema comunista numa situação-limite, portanto sob a forma de uma alternativa (ou o Partido como ele é, ou a atomização do proletariado) e, como sucede nos casos de emergência, você toma posição sem se preocupar demais com o conteúdo, sem examinar a vida do Partido nestes 40 anos, sua ideologia, sua história.
Enquanto isso, a situação se distende, a vida e a história do Partido continuam. Talvez você tivesse ficado mais perto das coisas se cumprisse a verdadeira função política do escritor, que consiste em mostrar-se lutando com as suas dificuldades em objetivar-se diante dos outros: escrevendo as "Memórias de um Rato Gosmento".
Você vê agora o que eu posso pensar da conclusão de sua carta. Nunca lhe pedi, está óbvio, que aceitasse de antemão o artigo que estou preparando. Mas recusá-lo a priori, calar assim alguém que também teve seus leitores e que desta forma contribuiu para fazer da revista o que ela é, retirar-lhe a palavra no momento em que você a muda, porque ele não está de acordo e para não precisar explicitar isso, impedi-lo de fazer um balanço das questões mesmas que ele tratou aqui em outras ocasiões, eis o que eu chamo, pessoalmente, uma "imperceptível pequena perfídia".
Nunca imaginei ter, sobre a direção da revista, estes "direitos morais", de que você falava tanto, e ainda há um mês pelo telefone. Em compensação, tenho a certeza de exigir o que me é devido quando desejo escrever na revista ainda uma vez, nem que seja apenas para os leitores poderem apreciar com base em documentos, e superando todos os diz-que-diz, nossas diferenças reais.
Você não precisará redigir uma resposta: o artigo tratará, essencialmente, do marxismo, e do comunismo, examinando suas análises somente na medida em que assim o exige o estudo da fase recente.
Será fácil você ressalvar a linha da revista num lide, –e mesmo, por que não, de dizer que está me pondo no olho da rua. Essas são responsabilidades a que não é possível furtar-se. Queira-o ou não você, em poucos meses você terá este artigo em mãos, e se verá –sabendo, como você sabe, que eu não o encaminharei a nenhuma outra revista– se é capaz de abafá-lo. Nada mudou na revista, dizia você no começo deste inverno. Uma coisa, pelo menos, mudou: até agora, só impúnhamos silêncio aos colaboracionistas e aos indignos nacionais (18).
Quanto à crônica de que lhe falei, e na qual imaginava tratar de assuntos bem variados, pensei nela para continuar participando dos "Temps Modernes" –e para ganhar alguns tostões. A sua carta me comunica que, para você, o primeiro motivo não vale nada. Você não supõe, imagino eu, que o segundo motivo seja suficiente para eu tolerar uma censura?
Você me fala na sua amizade. Que pena. Ouvi você dizer (ou foi o Castor) que não acreditava mais nas relações pessoais, que tudo o que havia eram relações de trabalho em conjunto. Como pode você, se não for por condescendência, falar em amizade no momento em que põe fim a este trabalho? Quando penso em todos estes anos, vejo de sua parte muitos obséquios, –e acredite que não me esqueço de nenhum deles. Amizade, não tenho certeza. De minha parte, ao contrário, você não se reduz à conduta que o vejo adotar, e você não precisa "merecer" o tempo todo para que eu o assegure de minha amizade.
M. Merleau-PontyP.S.: 1) Antes de sair em viagem, Lefort me mostrou o segundo texto que escreveu. Quando recebi sua carta, já ia lhe escrever a este respeito. A resposta (dele) está vazada em termos tais que, não podendo pedir correções a Lefort, porque ele se sentiu ferido, a meu ver com razão, eu não quero gestionar pela publicação (do artigo de Lefort), como fiz no (café) Procope. Falei disso a ele, e informo você a respeito para que tudo fique claro. Mas, certamente, o incidente está superado.
Ele teve, acredito eu, papel importante em nossa divergência. Você não compreendeu que liberdade eu deixo a um ex-aluno, mesmo em relação a mim, –nem compreendeu que, fazendo-o cortar cinco páginas e deixando que lhe enviasse o resto, eu tentava conciliar, com essa liberdade, o que eu devia a você. Receio que você ainda esteja se referindo a Lefort quando me escreve que eu o critiquei "indiretamente". Mas não é verdade. Nem peão, nem "braço direito".
2) Vendo Germaine na revista antes de chegar-me a sua carta, como ela me perguntasse sobre os próximos números, precisei lhe dizer que, de comum acordo, eu e você consideramos preferível, dadas as divergências políticas, que eles sejam inteiramente compostos por você. Acrescentei –sem (aguardar) resposta de você, porque eu considerava a coisa combinada– que isso não mudaria nada em minhas relações com a revista; que eu preparava um artigo e faria, sem dúvida, uma crônica (a partir do) próximo inverno. Deixo as coisas nesse estado. Não me cabe informar Germaine –nem (o editor) Julliard, onde não irei mais receber meu pagamento mensal.
3. As fofocas começam. Anne-Marie Cazalis anda dizendo que uma sua carta, datada de Veneza, a informou de nossa "briga" (ela pergunta às pessoas "de que partido" elas ficam, e afirma que a culpa não está toda com você). Não acredito, claro, numa palavra só do que ela diz. Mas você às vezes atribui aos outros informações que valem tão pouco quanto esta.

NOTAS
(1) Obra de Simone de Beauvoir
(2) "Rassemblement Démocratique Révolutionnaire", ou Reunião Democrática-Revolucionária", fundada em começos de 1948 por Sartre, David Rousset e outros
(3) Claude Lefort, bastante amigo de Merleau-Ponty, tem por aquela época uma polêmica com Sartre, que suspeita que o jovem filósofo estivesse servindo de porta-voz ao amigo comum
(4) Escrever sobre o acontecimento cotidiano, para quem não pertence a um partido (e mesmo quem, embora filiado a um partido, tem a inclinação filosófica), ao mesmo tempo exige e bloqueia a elaboração de seus princípios. Seu comentário sobre o dia 28 de maio fez que você desejasse escrever seu livro sobre a História, mas impede-o, ainda, de começá-lo (nota de Merleau-Ponty)
(5) Apelo pela paz, promovido pelos comunistas e simpatizantes
(6) Nome da organização, liderada por Ho Chi Minh, que lutou contra os franceses para conquistar a independência do Vietnã
(7) Você pode ver muito bem que as últimas palavras até exageravam na sua direção (nota de Merleau-Ponty)
(8) Oficialmente, pelo menos... Comentei, falando aos estudantes, a frase de Lênin sobre os músicos, citada por Gorki, e que se pode aplicar à literatura e à filosofia: ... "não posso escutar música com muita frequência, ela me afeta os nervos, dá-me vontade de dizer bobagens encantadoras e de afagar a cabeça das pessoas que, vivendo num inferno, conseguem criar uma tal beleza. Ora, hoje, é impossível acariciar as pessoas na cabeça, elas lhe cortariam a mão a dentadas. Precisamos bater nas cabeças, bater sem piedade, embora do ponto de vista teórico sejamos contrários a toda violência. Hum! Hum! Função terrivelmente difícil. Gosto da confissão franca desta divergência que não é uma hostilidade (nota de Merleau-Ponty) (9) Vincent Auriol, presidente da República Francesa à época
(10) Jacques Duclos, um dos líderes do Partido Comunista francês, preso na greve geral de 1952, apesar de deputado, e processado, entre outras coisas, por ter pombos no carro –que a polícia entendeu serem pombos-correio, que serviriam para mensagens subversivas. A repressão à greve e a prisão de Auriol são fatores que levam Sartre a escrever "Os comunistas e a paz", nos "Temps Modernes", propondo uma política bem próxima ao PCF, de que discorda Merleau-Ponty
(11) Nesta época se estuda uma Comunidade Européia de Defesa, que teria um exército comum, voltado contra o Pacto de Vársóvia. Seria uma radicalização da política atlântica, isto é, da aliança do Atlântico Norte, selando os rumos da Europa Ocidental aos dos Estados Unidos
(12) Principal órgão de carreira na administração francesa, com pessoal de elevada qualidade
(13) O Marrocos era, então, um protetorado francês
(14) Obra de Sartre (1943)
(15) Alusão à obra de Albert Camus, "O Homem Revoltado" (1951), de que Sartre discordava
(16) Em março de 1953, Stalin morreu
(17) Longo artigo de Sartre, que saiu nos "Temps Modernes", números de julho de 1952, outubro-novembro do mesmo ano, e abril de 1954
(18) Nos primeiros anos dos "Temps Modernes", a revista dizia a folha de expediente que não publicava artigos daqueles que colaboraram com o nazismo ou que, por esta razão, foram condenados à indignidade nacional
Copyright Suzanne Merleau-Ponty

Texto Anterior: Merleau rejeita a política de Sartre
Próximo Texto: A crise da revolução
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.