São Paulo, domingo, 14 de agosto de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A crise da revolução

Leia resumo da conferência de Merleau-Ponty

MAURICE MERLEAU-PONTY

1) Concepção "clássica" das relações entre filosofia e política. A filosofia, como posse do universal, envolve a política (1).
2) Hegel. O filósofo, em princípio, tudo o que faz é totalizar o movimento do mundo, e sua autocompreensão. Na verdade, é ele quem decide que certo estado do mundo é "maturidade" da realidade e que tudo o que vier depois não passa de "história estacionária".
De fato, a história aqui é um disfarce da filosofia: Hegel continua insidiosamente clássico, e não questiona o poder filosófico de totalizar –Engels mostrando, em "Feuerbach", que a idéia de Estado perfeito anula o movimento revolucionário da dialética. Isso retirado, a filosofia se torna, depois de Hegel, uma experiência elucidada: a filosofia "cabeça" do proletariado em Marx, o filósofo –"cobaia" da existência (Kierkegaard).
3) Marx. Para rejuvenescer a filosofia, Hegel via o mundo como acabado e decadente. Marx toma o mundo como começando, e destitui a filosofia de seu papel de última instância. - Mas (a filosofia) somente se subordina à história na medida em que dela pretenda se separar. Enquanto atividade prático-crítica, vaivém entre o fato e o sentido, ela vive e mesmo "se realiza na história". A espera de uma nova deusa, na "Dissertação sobre Epicuro e Demócrito". Trata-se de conferir às "verdades" sua "paixão", e às "paixões" sua "verdade" ("Dezoito Brumário"). Quando tivermos saído de um tempo que se define por sua "falta de decisão", a racionalidade renascerá, ou melhor, nascerá.
A junção do real e do racional se faz pela existência mesma do proletariado, que é um efeito do capitalismo, mas também o início de uma subversão das relações com a natureza e com os homens; estão dados conjuntamente o problema e a solução, a revolução já está aí, o futuro no presente, a decisão já tomada, o "espectro do comunismo ("Manifesto") que ronda a Europa. A existência do proletariado, a conquista do poder por ele e, em perspectiva, o fim das classes sociais formam um único acontecimento-norma, que constitui a realização da filosofia e o regulador da política. Há, neste sentido, um classicismo marxista: "destruir", precisamente, para "realizar" (a filosofia).
4) Nossos dias.
Caracterizados pela
crise da idéia de revolução
decadência acelerada do liberalismo.
a) crise da idéia de revolução. - O critério do compromisso (compromis) válido não é mais (como em Lênin) a ampliação da "consciência do proletariado", porém a salvaguarda de seus "interesses" (Hervé), –interesses a respeito dos quais ele pode se enganar. Assim é que na Europa (mas não na Ásia), desde 1945, as revoluções se fazem "de cima para baixo". A violência revolucionária se apresenta como defesa de uma ordem estabelecida (os opositores são condenados como criminosos de direito comum).
Pode haver, nessas condições, consciência de emancipação, será o poder, objetivamente, conquistado pelo proletariado? O regime é do proletariado, ou para o proletariado? E, no segundo caso, não há distância do poder ao proletariado, que continua sendo objeto da história? Não há mais-valia –mas caminha-se para uma sociedade homogênea? O regulador da política funciona? É para realizá-lo que se destrói o universal filosófico? É no rumo de mais verdade que se supera a consciência?
Sintomas: generalização do sigilo, passagem do clandestino ao crítico, da ação revolucionária à ação terrorista, do revolucionário profissional ao aventureiro, pelo menos a julgar pelos tipos que contavam com a simpatia de um comunizante como Malraux (Borodin). - Política da cultura: comparação dos textos "clássicos" de Engels, até mesmo de Lênin, e de Lukács sobre a arte e a literatura, que lhes reconheciam uma força de expressão distinta de seu valor quando utilizadas na luta imediata, e de concepções como a de Jdanov (2).
Isso faz duvidar que essas sociedades novas possam reivindicar a "missão histórica de "realizar a filosofia".
b) decadência acelerada do liberalismo. Cada vez fica mais certo que uma política da consciência é um embuste: crítica da liberdade-ídolo, ponto de honra do "mundo livre", que termina sendo reservada apenas aos amigos da liberdade e se torna, assim, um emblema de guerra.
Continua havendo solidariedade entre a filosofia e a política, mas no mal (3), não no bem: elas não conseguem viver juntas, padecem juntas. A consciência quer ser experiência, mas as coisas não respondem a esta demanda.
5) A posição de Sartre.
A noção de engajamento exprime filosoficamente esta situação: ela identifica a liberdade e o fazer, coloca a circularidade de uma ausência que é presença (somos livres para nos engajar) e de uma presença que é ausência (engajamo-nos para sermos livres). Sem a mediação procurada por Marx, ela é a imediação do dentro e do fora. Se, decididamente, ela não consegue fazer um passar ao outro, ela pode culminar, quer num subjetivismo, quer num objetivismo extremo.
Como ponto de partida, uma concepção relativamente otimista do engajamento: não se trata de escolher entre as políticas existentes. Mas de elaborar uma outra concepção "total" (criação da revista "Temps Modernes"; mais tarde, do RDR). À medida que a situação se torna tensa e que a realidade política se furta ao esforço que se envidava para reordená-la e mudar-lhe o sentido, o engajamento vem, senão a aceitar como definitiva a formulação por meio de antítese (comunismo/anticomunismo), pelo menos a indicar uma preferência. Quer dizer, a dar uma resposta parcial, reservando os motivos desta resposta ("por razões que são as minhas e não as deles").
Dificuldade desta posição: se as razões são diferentes, o que se escolhe também o é. Motivos de Sartre: a paz e o destino (sort) do proletariado. Motivos dos comunistas: a paz sob condições e o poder do proletariado entendido como ditadura do partido. Então: ou o acordo (entre Sartre e os comunistas) é um mal-entendido, ou o comunismo de hoje está mais perto de uma filosofia do engajamento que da filosofia marxista da história (constitui um fato notável que Sartre, não sendo marxista, esteja mais perto dos comunistas do que muitos dos que se dizem marxistas).
Sartre afirma, talvez, o que os comunistas diriam, se pensassem sua ação até o fim. Mas, então, por que eles não dizem isso, e continuam invocando a filosofia proletária da história? Talvez essa ideologia lhes seja necessária, para que a hierarquia atual apareça como premissa da sociedade sem classes. Sartre vê o comunismo, antes de mais nada, como (a) oposição à sociedade burguesa, e mostra que, sem esta oposição, o proletariado não teria mais defensores. O comunismo no poder é outra coisa e implica outras questões. Enquanto ele não pensar a si mesmo e recorrer a uma filosofia que o exprime mal, a situação continuará confusa.
O mesmo paradoxo na política da cultura: a concepção da literatura engajada nega a literatura e a ação mais estreitamente do que Engels e Lukács, considerados como representantes do classicismo marxista. Eles nutrem, pelo escritor da sociedade de classes, um respeito que também é desprezo: Balzac é reacionário, mas são exatamente suas paixões reacionárias que o fazem ver e retratar cruamente os homens novos do século 19. Sartre não quer nem esse respeito, nem esse desprezo: não quer que o escritor, se se pensar como homem, se salve como escritor. Coloca a literatura e a ação política conjuntamente, no plano único do acontecimento, porque pertencem a um único empreendimento, a um único tempo.
Na verdade, a política comunista da cultura é mais "existencialista que os textos teóricos de Lukács. Há realmente concordância entre seu "existencialismo involuntário ou inconsciente, e o existencialismo consciente de Sartre?
Conclusão. A meu ver, o engajamento não pode ir até o ponto de aceitar, sequer provisoriamente, os dilemas postos na política de hoje em dia. Isto quer dizer, não que não haja engajamento, mas que ele não pode ir até o solo dos acontecimentos no qual os blocos realmente se embasam. Isto só representaria um fracasso do engajamento se houvesse, por um lado, sujeitos, por outro, o campo dos acontecimentos diplomáticos (e)/ou militares, e, em consequência, a recusa de dizer sim ou não aos acontecimentos isoladamente considerados somente deixasse lugar à subjetividade ou à filosofia separada.
Mas, na realidade, não vivemos em duas ordens (segregadas), a da consciência e a do acontecimento-coisa. Não existe filosofia separada, e o plano dos acontecimentos e um limite que somente é atingido pelo chefe de Estado ou de partido, e (ainda assim) em certos momentos decisivos. A maior parte da ação transcorre no entre-dois, entre os acontecimentos e os puros pensamentos, nem nas coisas nem nos espíritos, mas na camada espessa das ações simbólicas, que operam menos por sua eficácia do que por seu sentido. A esta zona pertencem os livros, as conferências, mas também os comícios.
E reciprocamente, pode-se dizer, quando se põem em circulação armas críticas, instrumentos de consciência política, mesmo que não possam servir de imediato e não separem os adversários que então se batem. A ação, mesmo política, de Sartre continua sendo uma "ação de desvendamento"; vale e serve como seus livros, como os livros excelentes, na medida em que faz pensar. Lança uma luz ímpar sobre a crise das relações entre filosofia e política, que é também uma crise da filosofia e uma crise da política.
(As últimas linhas são quase textuais).

NOTAS
(1) Este texto, no qual Maurice Merleau-Ponty resume a conferência que levou às reclamações de Sartre, seguiu em anexo a sua carta de 8 de julho de 1953 (nota à edição francesa)
(2) O ideólogo do realismo socialista
(3) No sentido em que se fala, em francês, "mal-de-dents": como dor, não como figura moral
Copyright Suzanne Merleau-Ponty, 1994

Texto Anterior: Merleau rejeita a política de Sartre
Próximo Texto: Você age contra mim, escreve Sartre
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.