São Paulo, domingo, 14 de agosto de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Você age contra mim, escreve Sartre

JEAN-PAUL SARTRE
(29 DE JULHO DE 1953, SEGUNDO O CARIMBO POSTAL)

Caro Merleau,
Sua carta requer, seguramente, uma resposta ponto a ponto. Mas será melhor, a meu ver, que eu a dê de viva voz. Para mim, essa troca de críticas por escrito teve o efeito benfazejo de "furar o abscesso", como se diz, ou, pelo menos, de começar a furá-lo. Algumas coisas precisavam ser postas por escrito, de minha parte e da sua, para que assumissem uma forma mais refletida. Mas, a longo prazo, o benefício se converteria em inconveniente, porque, escrevendo, sempre endurecemos aquilo que estamos pensando.
Seguramente não estava no campo de minhas intenções proceder a um requisitório, e isso também não era sua intenção, tenho certeza. Se nos encontrarmos, o simples fato de nos vermos e ouvirmos bastará para aparar as arestas e eliminar a aspereza das "acusações recíprocas". Portanto, volto no dia 18 pela manhã, e se você me mandar um bilhete ou me telefonar no mesmo dia, estarei à sua disposição a tarde que quiser.
Há uma única coisa que quero lhe dizer, porque ela preparará nosso encontro: pelo amor de Deus, não interprete mais minhas entonações ou fisionomias do jeito que faz, isto é, completamente pelo avesso e de forma passional. Não sei se meu tom foi "glacial" quando lhe falei da aula que deu no Colégio de França, mas o que sei é que gostei muito dela e com toda a simpatia (Michelle pode lhe falar a respeito). Se reservas me vieram, foi depois de ler o opúsculo impresso (que você me enviou) e à luz de nossa discussão. Por sinal, elas não afetavam a aula propriamente dita, mas o que nela transparecia de sua atitude atual.
Se pude parecer glacial, é que sempre senti uma espécie de timidez para elogiar. Não sei fazê-lo, e tenho consciência disso. Seguramente se trata de um traço de caráter, e eu o confesso a você, mas que não tem relação alguma com o que você pôde inferir de sua observação. Quando lhe disse que teria a impressão de ser um traidor, caso expusesse "O Ser e o Nada", isso queria dizer que a mera exposição em nossos dias, isto é, dez anos mais tarde –numa situação em plena evolução, e a qual todos nós vivemos e repensamos dia a dia– de um pensamento que naquela época nascia de puras reflexões sobre a filosofia clássica e não-marxista me pareceria de molde a fazer retrocederem os estudantes que desejassem me seguir, de molde a devolvê-los a uma época na qual se podia pensar sem referência ao marxismo (ou, pelo menos, na qual se acreditava possível fazê-lo), e isso quando o dever do filósofo, hoje em dia, consiste em enfrentar-se com Marx (exatamente como seu dever, em meados do século passado, consistia em enfrentar-se com Hegel).
Bem: quer isso dizer que eu renegue "O Ser e o Nada"? Nem um só momento. Que eu o considere como uma obra de juventude? De forma alguma. Todas as teses do "Ser e o Nada" me parecem tão justas (hoje) quanto em 1943. Apenas, afirmo que em 43 elas tinham o futuro aberto à sua frente. Repeti-las hoje, sem lhes dar este futuro que elas implicavam, será a um tempo trair meu pensamento de agora e também traí-las. Em outras palavras: eu preciso escrever hoje um livro sobre a História e a Moral (e a política) tal que se possa, depois dele, reafirmar, sem trair, "O Ser e o Nada" até em seus pormenores.
Você vê que isso está muito longe de um arroubo passional. Agora, o que exprimia minha fisionomia quando eu lhe falei? Não sei, mas alguém que me conhecesse melhor do que você sem dúvida me teria visto "convencido", só que de modo algum tomado pela paixão (no sentido em que você usou esta palavra).
Sucedeu que Michelle estivesse presente quando eu lhe falei sobre o Colégio de França: "você vai mudar tudo isto, etc..." Perguntei a ela se eu aparentava estar irritado, e ela ficou boquiaberta com a pergunta. Ela sabe muito bem que esta era uma frase sem importância. Detesto o escândalo e as pequenas iniciativas atrevidas dos catedráticos que desejam passar por modernos, e absolutamente não desejaria mudar o Colégio de França, se fosse membro dele. Estas são coisas que a gente diz, brincando, mas que não valem uma hora de preocupação. E penso também que você teve perfeitamente razão em entrar lá, e eu teria agido da mesma forma no seu lugar: então, por que eu estaria irritado? ("Teria agido da mesma forma no seu lugar" não quer dizer "se eu fosse você", mas, por exemplo, se eu não tivesse escrito para o teatro, ganhando dinheiro suficiente, graças a ele, para largar o ensino. E, claro, se fosse possível eu (entrar para o Colégio).
E é absolutamente falso que eu, algum dia, tenha condenado você. Olhe, ao contrário, como se desenvolveu nossa "querela": quem se inquietou primeiro? quem discutiu primeiro? quem criticou? Você. Eu apenas me defendi, e foi depois de sua conferência que lhe fiz, por minha vez, algumas observações sobre a sua atitude. Aliás, você me censurava, outro dia, por supor gratuitamente e por princípio que você estivesse sempre e em todos os pontos de acordo comigo. Hoje me censura por passar todo o tempo a censurá-lo. Sei que estes dois julgamentos não são completamente incompatíveis, mas seria preciso, assim mesmo, matizá-los um pouco, para que um não contradiga o outro.
Tudo isso para lhe dizer, não que não me interprete, mas que seja prudente e não o faça partindo de princípios a priori. Eu lhe dou uma chave para nossa próxima conversa: é que lamento nosso desacordo e estarei com o temperamento mais conciliador possível.
Portanto, por favor não venha encolerizado nem com reivindicações. Se eu falei "três vezes", como você diz, da conferência que você pronunciou, acredite que não foi porque me sentisse ferido. Tenho a convicção de que você falou de mim em termos amistosos. Foi pela razão seguinte: objetivamente as pessoas dizem: "Merleau-Ponty tem de achar muito grave a atitude de Sartre, para que precise negar, de público, seu acordo com seu colaborador e amigo". Quem afirma isso? Você responde: os reacionários. Não são eles, em absoluto, e de forma alguma eu os constituo juízes entre mim e você.
Mas eu me lancei numa empresa: com razão ou sem, pretendo usar os meios a meu alcance para animar os intelectuais a formarem uma esquerda aliada ao comunismo. Já a sua atitude, explorada pela direita, age necessariamente como um freio, sobre esses intelectuais que o estimam.
É óbvio que importa muito pouco que tenham escrito isso ou aquilo no "Express: o que conta é que você age contra mim. A amizade expressa no seu tom nada tem a ver com isto. Ou melhor, tem sim, agrava as coisas: "Ele precisa achar tudo isso muito grave". Você vê que precauções ele toma, sua amizade por Sartre. Mas ele julgou, (assim mesmo), que precisava dizer isto, etc., etc., etc.... Quanto aos rumores que correm sobre nossa briga, peço-lhe com toda a seriedade para acreditar que nada tenho a ver com eles. Não falei nem escrevi a ninguém a esse respeito, fora três ou quatro que são, como costumo dizer, "de minha família (Bost, Castor, Michelle).
Tudo isto não atinge o fundo da questão mas, apenas, meus sentimentos. Quero encontrá-lo para salvar nossa amizade, e não para terminar de perdê-la: eis o que desejo que você saiba. Veja: mais uma interpretação. Eu não disse ao Castor que não acreditasse nas relações pessoais. Disse que as relações pessoais somente tinham sentido concreto caso se fundassem em empreendimentos comuns. Queria condenar, dizendo isso, certas relações (exatamente ao contrário das que mantenho com você) que tenho com algumas pessoas.
Saímos para jantar e conversamos à volta de uma mesa sem nenhuma espécie de ligação, exceto a de sermos da "intelligentsia de esquerda". Mas isso jamais significou que a única relação entre as pessoas fosse o trabalho. Através do empreendimento (comum) nascem as relações (confiança, simpatia, intimidade, relações dos "temperamentos (caractères), e mesmo conversas sobre qualquer assunto, jantares, viagens, etc., etc.).
Isto não é uma obviedade (lapalissade) enorme? Valerá a pena concluir, disso, que eu seja um imperialista, um feudal de coração tão seco que somente se preocupa com as pessoas em função do trabalho que elas fazem por ele e da utilidade que elas tenham? Larguemos isso: de todo modo, sou seu amigo e quero continuar sendo. Penso que haverá de reconhecer que você mesmo pode ser "passional", escrevendo que o coloco no olho da rua, quando foi você quem deixou a direção da revista, contra a minha vontade, a meu regresso de Saint-Tropez.
Portanto, até breve, espero eu (com os correios italianos, talvez você só receba esta carta quando eu já estiver em Paris), e um grande abraço,
J.P. Sartre
Quanto aos vinte e cinco mil francos, não entendo por que você não vai mais recebê-los, a não ser por irritação. Você me fez uma proposta: eis o meio que lhe proponho para ganhá-los e continuar na revista. Eu lhe respondi: não, a meu ver este meio não é bom. Isto significava apenas: procuremos outro meio. Nada mais que isso.
Copyright Arlette Elkaïm-Sartre, 1994

Texto Anterior: A crise da revolução
Próximo Texto: Comunistas eram 'fábrica de verdades'
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.