São Paulo, domingo, 14 de agosto de 1994
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Comunistas eram 'fábrica de verdades'

JOÃO BATISTA NATALI
DA REPORTAGEM LOCAL

Um fantasma rondava parte da Europa nos anos 50 e não se tratava propriamente do comunismo. Era o peso institucional dos partidos comunistas e a impossibilidade de os intelectuais se posicionarem, a não ser em função deles.
Na França de 1953, cenário da correspondência entre Jean-Paul Sartre e Merleau-Ponty, a imagem do PCF, fundado em 1920, era de certo modo contrastada.
O secretário-geral do partido, Maurice Thorez, não havia completamente domesticado a tendência insurrecional liderada pelo dirigente Charles Tillon.
Thorez queria que os comunistas centrassem sua tentativa de crescimento político na área sindical e fossem hábeis na atividade parlamentar.
Esta era, aliás, a orientação de Joseph Stálin. Mas Tillon e seu grupo queriam repetir a experiência de 1947, quando entre outubro e dezembro a greve geral chegou a afetar o abastecimento de Paris em carnes e cereais.
Tillon caiu nas malhas de um dos expurgos internos. Deixou como recado explícito, porém, a possibilidade de aplicação do modelo clássico de revolução que levaria, necessariamente, à sovietização do território francês.
O PCF não era a primeira força eleitoral. Perdia para gaullistas. Mesmo assim, em 1951, elegeu 103 deputados e obteve 5.056.605 votos (26,9% do eleitorado).
Sua força não era apenas numérica. O partido se impunha no ensino e na cultura, mesmo sem definir, a rigor, critérios estéticos.
"Les Lettres Françaises", sua revista literária, descartava respeitosamente o realismo socialista. Mas o marxismo era o primeiro dos critérios de seleção de seus "maŒtres-à-penser".
Tinham sido filiados ao PCF, havia até bem pouco, intelectuais como Marguerite Duras e Edgar Morin. François Furet, Max Gallo, Emmanuel Le Roi Ladurie e François Maspero mantinham suas carteirinhas de militante.
Uma boa resenha ou crítica no jornal do partido, "L'Humanité", abria as portas do sucesso de público, ou ao menos sinalizava que "Maurice" (Thorez) simpatizava com o autor ou cineasta.
O PCF impunha sua lógica e permeava a intelectualidade com sua leitura tosca da dialética.
O intelectual, mero personagem da filosofia da história, se angustiava por dispor de binóculos privilegiados que mensuravam a distância que ainda era preciso percorrer até a chegada do socialismo.
A esquerda –da qual Merleau-Ponty foi um caronista pouco convicto– possuía do mundo uma visão bipolarizada. Não havia, ainda, argumentos consensuais para desmanchá-la ou relativizá-la.
Não prevalecia, no início dos anos 50, uma clara visão do desconforto material das nações do Leste Europeu. A impressão era a de que na RDA se vivia melhor que na Itália e na Hungria bem melhor que na Espanha.
Expressões como "vanguarda tecnológica" faziam certo sentido ao colocarem União Soviética e Estados Unidos quase em pé de igualdade. A energia nuclear virara cartão postal e Moscou possuia a bomba atômica desde 1949.
Essa visão pode parecer de uma simplicidade pueril. Era ela, no entanto, que balizava os bem pensantes na esquerda.
Sartre não foi uma exceção. Ele viu o quanto a França se enroscou de vez na Indochina. A vitória da guerrilha pró-comunista em Dien Bien Phu estava em contagem regressiva. Chegaria em 1954.
A Indochina tinha sido, aliás, o estopim da crise que levara o PCF a retirar, anos antes, seus seis ministros do governo Ramadier.
Na Argélia, Moscou se colocaria em breve ao lado da guerrilha anticolonial, que se intensificaria até o fim da década e levaria a 4ª República de roldão.
Além disso, nos dois episódios, a esquerda e os comunistas eram porta-vozes do inconformismo de a França ter deixado de liderar um dos blocos do confronto mundial.
Com a Guerra Fria, o governo francês se aliara aos EUA.
Os "companheiros de caminhada" dos comunistas davam o troco, em letra de forma e nas ruas.
Foi assim em 1952, quando o general norte-americano Mathew Ridgway visitou Paris e uma manifestação de protesto terminou com um morto e 230 feridos.
A sensação dos intelectuais de esquerda de fazerem parte do mesmo espaço de pensamento que os comunistas se comprometeria abertamente só em 1956.
Naquele ano, a Rússia invade a Hungria e o PCF não leva às últimas consequências –como o faria o PC italiano– o relatório apresentado por Khruschov no 20º Congresso do PC soviético sobre os crimes de Joseph Stálin.
Moscou perde a função simbólica de polo de irradiação da chamada ideologia proletária. Para alguns, como Sartre, esse polo se desloca para Pequim.
No entanto, Mao Tsé-tung é passível, na esquerda francesa, de muitas leituras.
A mais radical o toma como balão de oxigênio para viabilizar o modelo clássico de tomada do poder. A mais singular adota o maoismo como postulação concreta de rejeição radical de qualquer burocratismo partidário.
É a essa facção que Sartre se associa no final dos anos 60.
O maoísmo teve uma vida relativamente breve. Mao morre em 1976 e Sartre quatro anos depois.

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