São Paulo, domingo, 14 de agosto de 1994
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O futuro de Sartre era fixo

MARILENA CHAUI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Um sentimento de profunda melancolia nos invade quando, rememorados hoje, os episódios que cercaram a ruptura de Sartre e Merleau-Ponty aparecem sob a luz do irremediavelmente ultrapassado. Fosse maior a distância temporal, talvez esse sentimento não nos habitasse. Sua proximidade, porém, nos faz perceber o envelhecimento daquilo que, há pouco, apaixonava, reunia ou separava pessoas, decidia vidas e mortes, palavras e obras. No entanto, quando o tempo houver feito seu longo trabalho, nossos pósteros não verão o velho, mas a dignidade do antigo.
Todavia, se assim é quanto aos "fatos" que originaram a polêmica e seu desenlace, o mesmo não pode ser dito nas "questões" que suscitaram, porque estas não foram ultrapassadas e constituem o solo no qual ainda (talvez sempre?) nos movemos. A primeira delas, a amizade, perpassa toda a história da filosofia, nas páginas extraordinárias de Platão, Aristóteles, Cícero, Sêneca, Santo Agostinho, Boécio, La Boétie ou Montaigne. As três cartas, aqui publicadas, exprimem a delicadeza do tecido da amizade, o cuidado recíproco dos dois tecelões para não esgarçá-lo nem rompê-lo e sua incapacidade para mantê-lo íntegro, pois, a cada novo fio trançado pelo avesso, algo se desfia no desenho do direito:
"Tu me falas de tua amizade. Que pena. Ouvi-te dizer que já não crês nas relações pessoais, só havendo relações de trabalho em comum. Como podes, senão por condescendência, falar de amizade no momento em que pões um fim a esse trabalho? Olhando para todos estes anos, vejo, de tua parte, muitos benefícios –quanto à amizade, não tenho tanta certeza. Para mim, ao contrário, não te reduzes à conduta que te vejo ter, não careces de incessantemente fazer 'por merecer' para que eu te assegure minha amizade". (Carta de Merleau-Ponty). "Gostaria de ver-te para salvar nossa amizade e não para acabar de perdê-la, eis o que quero que saibas". (Carta de Sartre).
A força das paixões e a convicção de cada um dos protagonistas deixam suas marcas como farrapos que mal encobrem sua nudez, mas que, se os dilacera, não os envergonha nem nos envergonha.
A segunda questão, atada momentaneamente à figura do "intelectual engajado", coloca um dos temas fundamentais que Sartre e Merleau-Ponty trabalharam em suas obras: o da relação entre filosofia e política ou, na expressão magistral de Merleau-Ponty, "as difíceis relações entre o filósofo e a Cidade" (expressão usada durante a aula inaugural do Colégio de France, publicada como ensaio, "Elogio da Filosofia"). Dessa segunda questão trataremos aqui.
Filosofia e Política
A mudança de opinião e de posição políticas por Sartre, indo do anticomunismo à defesa do comunismo e retornando ao anticomunismo, mas, agora, considerando-se marxista, não é fruto de humores, manias ou fobias: funda-se numa concepção da filosofia e da política.
A tese nuclear de suas primeiras obras –"O Ser e o Nada" e "O Imaginário"–, partindo da fenomenologia husserliana e da filosofia heideggeriana da existência, é a diferença de essência entre o mundo das coisas –o Ser– e a consciência –o Nada. O primeiro é substância; é resistente, opaco e viscoso. É o em-si, objetividade nua e bruta. A segunda, ao contrário, é insubstancial, não é alma nem substância imaterial ou espiritual, mas pura atividade e espontaneidade. É o para-si, subjetividade plena.
Para ela, os outros, embora presumidos como humanos, são mundo, portanto, seres, coisas. Opacos para a consciência, os outros a deixam no solipsismo, como única existência possível. Donde a famosa expressão de "Entre Quatro Paredes": "o inferno são os outros", pois cada um deles, enquanto consciência ou sujeito, reduz os demais à condição de mera coisa.
Embora situada no mundo, a consciência, por ser nada, não é condicionada por ele, não podendo ser determinada pelas coisas nem pelos fatos. Pelo contrário, tem o poder de nadificá-los, fazendo-os existir como idéias, imagens, sentimentos e ações. Donde a célebre fórmula sartreana: "estamos condenados à liberdade". Não é casual que a obra seguinte de Sartre seja justamente "O Imaginário", pois é na consciência imaginante que melhor se apreende o poder nadificador da subjetividade. Compreende-se também porque a política seja tomada como decisão e escolha inteiramente livres, exprimindo-se noutra célebre frase sartreana: "o importante não é o que fazem aos homens, mas o que estes fazem com o que quiseram fazer deles".
O Nada sartreano é a nova versão –a partir de Hegel e de Husserl– da consciência de si reflexiva de Descartes, portanto, soberana, fundadora, constituidora do sentido do Ser.
A filosofia de Merleau-Ponty, vinda das mesmas fontes, ergue-se, porém, contra elas enquanto herdeiras do intelectualismo, isto é, da suposição da soberania da consciência como doadora de sentido e fundadora do mundo enquanto significação. A tradição intelectualista é a do pensamento de sobrevôo, isto é, de uma consciência que, situando-se fora do mundo e diante das coisas, os domina pelo pensamento. Ou, como escreve o filósofo, faz a realidade existir como representação ou idéia, passando do ver ao "pensamento de ver", do imaginar, ao "pensamento de imaginar", do sentir ao "pensamento de sentir".
Contra a herança intelectualista, Merleau-Ponty afirma a "encarnação da consciência" num corpo cognoscente e reflexivo, dotado de interioridade e de sentido, relacionando-se com as coisas como corpos sensíveis também dotados de interioridade e de sentido. Nossa relação fundamental com o mundo é a da intercorporeidade, fundadora da intersubjetividade: os outros não coisas nem partes da paisagem, mas nossos semelhantes. Não é gratuito, portanto, que as primeiras obras de Merleau estudem a estrutura do comportamento e a essência da percepção. O pensamento começa e se faz nas relações de nossa vida encarnada com o mundo: a percepção e a linguagem.
Se a consciência não é pura espontaneidade desencarnada soberana, compreende-se que a liberdade, na formulação merleaupontyana, seja "o poder para transcender a situação que não escolhemos, dando-lhe um sentido novo", como El Greco, que transforma seu astigmatismo em pintura, Valéry, sua melancolia em obra poética, Proust, sua neurastenia em literatura, Marx, sua condição de advogado pequeno-burguês em traidor de sua classe e revolucionário. Eis porque, em sua carta, Merleau-Ponty insiste em que ser filósofo não pode ser, de modo algum, separar-se e afastar-se do mundo: não estamos no mundo, mas somos do e com o mundo.
Quais as consequências políticas dessas duas concepções divergentes da filosofia? Exatamente o que transparece nas três cartas: Sartre, pondo-se no turbilhão vertiginoso dos acontecimentos –o Nada à procura de Ser para transformá-lo no que a consciência pensa e quer–, Merleau-Ponty exigindo distanciamento –nossa promiscuidade originária com o mundo exige que a filosofia não seja submersa pelos fatos, nem o filósofo arrastado pela força dos acontecimentos. o prefácio de "Sinais", escreve: "em filosofia, o caminho pode ser difícil, mas temos certeza de que a cada passo toma possível os outros. Em política, temos a impressão acabrunhante de que tudo deve ser sempre refeito".
Porque, para Sartre, a consciência é leve e insubstancial, pode aceitar o apelo de todos os fatos e de todos os acontecimentos: a consciência não se deixa impregnar por eles, conservando a soberania. É porque a consciência é encarnada num corpo e situada na intercorporeidade e na intersubjetividade, que Merleau-Ponty não pode, para usar sua expressão definidora do filósofo, "dar o assentimento imediato e direto a todas as coisas, sem considerandos", pois "é preciso ser capaz de tomar distância para ser capaz de um engajamento verdadeiro, que é sempre também um engajamento na verdade". Referindo-se à aula inaugural no Colégio, Sartre afirma que Merleau-Ponty possui uma concepção da filosofia que só aparentemente permitiria conciliá-la com a política, mas, realmente, torna impossível "jogar nos dois tabuleiros". A política, escreve ele, é ação fundada numa escolha objetiva, a partir

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