São Paulo, domingo, 14 de agosto de 1994
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Para fotógrafo, não há nada mais terrível

ANA ESTELA DE SOUSA PINTO
EDITORA DE FOTOGRAFIA

A situação de Ruanda é a coisa mais terrível que o fotógrafo Sebastião Salgado já viu em seus 50 anos de vida. E ele já viu muita coisa horrível.
Desde o começo da década de 70, quando trocou a profissão de economista pela máquina fotográfica, Salgado retratou a miséria, a fome e o suor em todo o Terceiro Mundo. Fez os refugiados no Máli, no Sudão, no Chade, o mar de garimpeiros em Serra Pelada, recolhedores de enxofre na Indonésia, operários na Índia, bóias-frias nos canaviais paulistas.
Em 92, a exposição em Nova York de fotos do campo de refugiados de Korem (Etiópia) levantou polêmica. Achavam as imagens fortes e chocantes demais.
Não era nada perto do que ele acaba de registrar em Goma (Zaire), para onde fugiram mais de 1 milhão de ruandeses. }Agora é muitíssimo mais brutal, muitíssimo mais violento, diz o fotógrafo brasileiro mais conceituado no mundo.
PASSADO
Ruanda é um país que eu conheço já há bastante tempo, não é a minha primeira viagem. Foi o primeiro país na África que eu conheci, em 1971. É um país que tinha uma economia bastante equilibrada. Um país com uma densidade populacional muito alta, mas onde todo mundo trabalhava.
O que aconteceu em Ruanda há bastante tempo é o que aconteceu no Brasil e nos países do Terceiro Mundo: a matéria-prima não tem preço. Quando eu estive fotografando as plantações de chá, em 1991, custava 160 francos para produzir um quilo de chá que era exportado por 130 francos. Quem comprava um quilo de chá de Ruanda estava ganhando de presente um terço. O país estava transferindo a saúde, a capacidade de poupança, transferindo tudo para o exterior.
É um país onde foram ficando só as migalhas do pão, porque o pão foi embora.
ÊXODO
Quando o pessoal abandonou Ruanda e entrou na Tanzânia, eu fui fotografar porque era parte do meu projeto (}Deslocamento de Populações, um documentário fotográfico sobre migrações populacionais). Calcula-se que naquela época havia mais ou menos 250 mil pessoas no campo de refugiados em que trabalhei (Benako, na Tanzânia). Na região havia 500 mil pessoas.
E eu voltei para fotografar o pessoal que está entrando no Zaire porque também faz parte do meu projeto. Mas também estou chegando de Moçambique, que tem uma história ao contrário. Existem 1,8 milhão de pessoas que foram refugiadas nos países vizinhos nos tempos de guerra e que agora estão voltando. A população está toda voltando, da Zâmbia, do Zimbábue, do Malaui, da Tanzânia.
Eu fiz três viagens para Moçambique e na volta fui ao Zaire fazer a saída do pessoal de Ruanda.
CATÁSTROFE
O que acontece agora em Ruanda é uma catástrofe que provavelmente nunca aconteceu na história do homem. Sair um milhão de pessoas de uma só vez, pessoas debilitadas pela guerra, que já eram refugiadas dentro do próprio país, deslocadas, já não viviam nas suas casas. E o cólera matou dezenas de milhares de pessoas.
Agora já está terminando o cólera mas começa uma outra doença que é a disenteria bacteriológica. Uma doença pior que o cólera porque tem que curar com antibiótico caríssimo. Está começando um segundo ciclo de morte na Ruanda. Hoje nós estamos em pleno segundo ciclo de morte em Goma.
São dramas fabulosos, perfeitamentes possíveis de ser evitados. Primeiro, reconhecendo mais direitos aos países do Terceiro Mundo. Segundo, prevendo esse desastre na Ruanda.
É um crime incrível.
MORTE
O que vi em Goma esses dias eu nunca vi antes. De tão bárbaro, tanta violência. Você vê 4.000 pessoas ao dia morrer. Ser colocadas em montanhas de mortos e ser enterradas por tratores. As pessoas chegam ao ponto de uma criança morrer e os pais não chorarem mais. Trazer a criança, jogar num bolo de mortos, virar as costas e ir embora.
Pessoas que já perderam de certa maneira a cerimônia da morte, a sensibilidade da morte através de toda a violência que eles acabaram de ver. Eu estou profundamente chocado com o que vi.
Na Etiópia (onde Salgado fotografou os refugiados há dez anos) se passava de outra maneira. Agora é muitíssimo mais brutal, muitíssimo mais violento. É difícil se medir catástrofes, mas agora é muito mais brutal, muitíssimo mais brutal, não tem comparação.
As pessoas se batem para viver, mas não existe mais nenhuma sensibilidade à morte, a morte virou parte da vida dessa gente. A ponto, por exemplo, de uma pessoa da família morrer e ninguém chorar.
Morreu, morreu, jogou fora, acabou, estão esperando os outros morrerem também. É um negócio terrível, terrível, terrível.
MAIS PERIGO
O risco é de que a partir do dia 22 de agosto o problema se multiplique por dois, porque as tropas francesas que ocuparam o sul do país devem sair. Essa região tem 2,5 milhões de pessoas, se o Exército francês se retirar de uma só vez essas pessoas vão entrar no Zaire outra vez. Há o risco de ser um drama maior.
A comunidade internacional tinha que reagir. Acho que a espécia humana está ameaçada. O que está acontecendo em Ruanda pode acontecer nas repúblicas soviéticas, pode acontecer em vários lugares do mundo ao mesmo tempo. O que está fazendo o Conselho de Segurança das Nações Unidas?
No Burundi, que é um país ao lado, há dez dias foram assassinadas mais de 2.000 pessoas. Os hutus foram assassinados pelos tutsis que estão no poder. Isso deve explodir também. Alguma coisa tem que ser feita. Nós temos recursos para fazer, é um problema de boa vontade e disposição. O mundo não pode aceitar mais a nossa espécie ser ameaçada, ser violentada.
BANALIDADE
Acho que é bem possível que aconteça (que o assunto Ruanda acabe esquecido). Porque houve uma primeira crise, uma segunda, é possível que aconteça uma terceira crise no final deste mês, é possível que aconteça uma crise no Burundi logo depois, e as pessoas vão entrando na normalidade da violência, da brutalidade e já não prestam mais atenção.
Existem outros casos na África tão graves. A guerra mais violenta depois da Segunda Guerra Mundial está acontecendo na África já há alguns anos e ninguém fala dessa guerra, que é a guerra de Angola. Existem mais de 1 milhão de mortos na Angola, e você não vê nenhuma imagem, não interessa a ninguém o que está acontecendo.
MILITÂNCIA
Eu estou documentando a situação de Ruanda com uma série de organizações humanitárias. Dou essas imagens para eles para ver se a gente consegue sensibilizar, criar um debate, ver qual é a melhor maneira possível de difundir o problema. Olha, é uma luta difícil.
Eu tinha certeza absoluta de que a espécie humana ia se sair bem. Hoje, eu tenho esperança. Tenho visto o problema aumentar e não vejo nenhum movimento em direção da resolução desse problema.
BRASIL
O Brasil é um país riquíssimo, a oitava potência econômica do mundo. Tem uma capacidade de poupança muito grande. Um Produto Nacional Bruto imenso. Uma medicina de alto nível. O Brasil poderia ajudar. As organizações humanitárias necessitam imensamente de médicos. O Brasil poderia se integrar nesse sistema.
O Brasil está marginalizado pela distância, mas pela capacidade técnica e pelos recursos, não tinha que estar marginalizado de jeito nenhum.
FUTURO
Vou tirar uns dias de férias agora (no Brasil), porque eu estou morto. Depois, não sei se volto para Ruanda. Tenho um trabalho para fazer na ex-Iugoslávia no mês de setembro, mas não sei se vou para a Iugoslávia ou se volto para lá (Ruanda). Sinceramente, eu não sei.

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