São Paulo, sábado, 20 de agosto de 1994
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Antiga São Paulo teve sua farra da castidade

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

"Balança, Trombeta e Battleship ou O Descobrimento da Alma", é um conto de Mário de Andrade, ou, como ele mesmo disse, um idílio. Inédito. Está sendo publicado pelo Instituto Moreira Salles, que me enviou provas do livro, e pelo Instituto de Estudos Brasileiros da USP.
O título é um tanto inacreditável, assim como parece pouco crível que tenhamos a sorte de degustar uma ficção inédita de Mário de Andrade como parte da celebração do seu centenário. Acresce ainda que, como trabalhou esse conto durante 13 anos, Mário deu a Telê Ancona Lopez a oportunidade de prefaciar o texto com um estudo de crítica genética que ilumina, além do conto em questão, a obra em geral do autor de "Macunaíma".
Só faltaria, agora, lançar sobre tão alvissareira notícia o balde de água fria de achar que em si mesmo "Balança, Trombeta e Battleship" ficou tanto tempo inédito (à exceção de um excerto que saiu na revista portuguesa "Presença") porque realmente não fazia tanta falta assim.
Acontece que o conto, na maluquice do enredo, dos personagens que Mário criou e do estranho banho que tomam para perderem a virgindade, tem tudo para enriquecer a bibliografia do autor.
Telê Lopez fala em "Olive Twist" ao comentar o conto, e sem dúvida a gente sente o toque dickensiano, menos no batedor de carteiras inglês do que nas imundas meninas paulistas que o inglês resolve lavar e esfregar na memorável faxina e que trazem à mente crianças carvoeiras dos espaçosos romances ingleses de outrora.
"Balança, Trombeta e Battleship" é uma espécie de broto do tronco autobiográfico e viajeiro que Mário de Andrade intitulou "O Turista Aprendiz".
O conto foi na verdade concebido durante a viagem à Amazônia em que Mário foi o cavaleiro andante, ou navegante, de uma grande dama e de duas sinhazinhas paulistas, a saber, dona Olívia Guedes Penteado, da aristocracia do café, mecenas de vocação, e de Margarida Guedes Nogueira, ou Mag, e Dulce de Amaral Pinto, ou Dolur, filha esta da pintora Tarsila do Amaral e Mag sobrinha de dona Olívia.
A viagem foi no princípio do ano de 1927. É importante ter em mente que Mário imaginou que ia fazer à Amazônia uma viagem semelhante à que fizera em 1924 às cidades barrocas de Minas para mostrá-las ao visitante ilustre que era o escritor e "globe-trotter", como então se dizia, Blaise Cendrara.
O grupo da viagem a Minas compreendia, além de Mário, a matrona e mecenas dona Olívia seu genro Godofredo da Silva Teles, René Thiollier, Oswald de Andrade e seu filho Nonê.
Conta Telê, na sua introdução a "B.T. e B": "Nessa perspectiva, a segunda viagem, agora ao Norte, à Amazônia, idéia de dona Olívia, atrai aquele que recém terminara as primeiras versões de 'Macunaíma'.
A Amazônia era um sonho antigo, ligado à valorização do primitivismo, da preguiça enquanto ócio criador. (...) Mário de Andrade toma suas economias, compra roupas de viajante chique, supre-se de filmes para a Codaque, pois está no auge de sua experiência de fotógrafo moderno.
Imagina contar com 'uma porção' de companheiros 'gente de circo, disposta e bem divertida'. No Rio de Janeiro, dentro do navio já, percebe que se tornara 'o único homem da expedição', no dizer de dona Olívia, ao admitir a redução do grupo". Como se vê, o homem punha, e dona Olívia dispunha.
O fato é que Mário, no mesmo caderno em que vai compondo "O Turista Aprendiz" e registrando o que pode enriquecer "Macunaíma", toma notas para "B.T. e B", enquanto se entretém com Mag e Dolur.
Como Josafá é o nome de um dos passageiros do navio que transporta os paulistas, Mário se lembra de um sermão de Vieira que fala no vale de Josafá, na trombeta do Juízo final e na balança que pesa o pecado dos homens. Está pronto o cenário.
Mag e Dolur são apelidadas por Mário de Balança e Trombeta, enquanto dona Olívia (isto permanece um segredo mortal entre Mário e as mocinhas) ganha o apodo de Juízo Final. Acrescento que Mag, decênios depois, relembrava passagens da alegre viagem, contando, por exemplo, que como ocupavam, Dolur e ela, cabine vizinha à de Mário, furaram a madeira para espioná-lo, chegando à conclusão de que "ele vivia escrevendo".
Tudo isto fica significativo diante de "B.T. e B.", conto em que Mário de Andrade revelou o mais que ousou acerca de sua própria sexualidade. Deus saberá como, no texto do conto, Mag e Dolur vão virar as duas meninas pobres e sujíssimas que o jovem inglês Battleship começa a investigar a partir do instante em que uma delas, que ele imaginou fosse uma ladra como ele próprio, lhe estende a mão não para roubar e sim para pedir uma esmola, isto no prado de corridas da Mooca.
A menina queria comer, não queria roubar. Teria no máximo 14 anos, "pela indecisão ainda dos seios". Battleship se perturba. Aquela menina não furta como ele, para manter a dignidade, a pose, e para se vestir bem. Ela não disfarça nada. É de fato imunda, e pede esmola para comer, onde é que já se viu?
Battleship sai no seu encalço, deixando a São Paulo elegante pelos bairros pobres até "um mato baixo que para Battleship figurou a jungle selvagem. A pequena tomou pela vereda que enfiava pelo mato".
Ao entrar no mato, Battleship está perdido. Ou salvo. Tal como o leitor, que mergulha de cabeça na história inverossímil mas que vai ganhando força e aceitação até chegar à gloriosa suruba sem sexo no riacho de chuva.
Mário de Andrade faz questão de informar que tanto as meninas quanto o jovem "pick-pocket" são desvirginados no estranho banho em sentido meio esotérico, pois "já eram sabidíssimos nesses caminhos da vida, nenhuma hesitação teriam no cumprir o ato do amor".
A própria ereção de Battleship, pudicamente disfarçada por ele, não tem qualquer impulso de levar à posse. O desvirginamento dos três é de outra espécie, uma "partouse", como diria Mário, do tipo místico. Ou simplesmente "um deslumbamento", como está no próprio conto.
Duas árvores
Como se sabe, apesar de ter vivido uma vida tão documentada, tão transformado em literatura e na cordilheira de cartas que escreveu a tantos que o admiravam, que o amavam, que guardavam suas cartas como preciosidades que de fato eram e são, apesar de todo esse mundo impresso e manuscrito Mário não disse nada sobre algum único amor que fosse em sua vida.
Num dos melhores livros que li sobre ele, "Mário de Andrade - Exílio no Rio", Moacir Werneck de Castro trata do assunto com grande cuidado e delicadeza.
E cita uma carta de Mário a Oneida Alvarenga, na qual ele procura definir aquilo que chama... "a minha assombrosa, quase absurda, o Paulo Prado já chamou de 'monstruosa', sensualidade. O importante é verificar que não se trata absolutamente dessa sensualidade mesquinhamente fixada na realização dos atos do amor sexual, mas de uma faculdade que, embora sexual sempre e duma intensidade extraordinária, é vaga, incapaz de se fixar numa determinada ordem de prazeres que nem mesmo são de ordem física. Uma espécie de pansexualismo, muito mais elevada e afinal de contas, casta, do que se poderia imaginar".
Mário informa ainda, na mesma carta, que Manuel Bandeira lhe dizia: "Você tem o amor do todo!"
Agora, deixem-me registrar aqui a comparação que me ocorreu entre uma certa árvore na vida sexual do Mário panteísta e outra árvore, na vida fenomenológica de Sartre.
A árvore de Mário surge numa carta que ele escreveu a Rosário Fusco, em 1934: "Imagine que, faz isso uns oito anos talvez, mas muito me deixou assombrado, sabe que eu descobri que seria capaz de te relações sexuais com uma árvore! Não ria não. (...) Está claro que não continuei a experiência, mas foi o caso que num dia de grande quentura, junto dum tronco admirável que me dera sombra, principiei passando a mão pelo simples prazer das coisas, e esse prazer se intensificou, tive uma fraqueza, encostei o rosto no tronco"...
Como meu espaço está acabando não vou citar o trecho do romance de Sartre "A Náusea", 1938, em que o herói Roquentin, sentado num banco de praça, tem sua explicação da náusea, do asco diante da vida, ao contemplar as nojentas e negras raízes de um castanheiro a seus pés. A proliferação das coisas existentes, que apavora Roquentin através da imagem do castanheiro, se dissolve no terno abraço que dá Mário em sua árvore. Abraço de Battleship.

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