São Paulo, domingo, 21 de agosto de 1994
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Getúlio assumiu o destino de 'fazer' o país

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

O livro mais inacabado que já se publicou no Brasil foi "Getúlio Vargas, meu Pai", de Alzira Vargas do Amaral Peixoto. É de 1960 e nos aproxima de Getúlio vivo, e, me parece, muito mais sincero do que era seu costume. Ou do que era quando falava com qualquer outra pessoa. Acontece que Alzirinha, como era universalmente chamada, não inclui no livro o último período do governo de Vargas. Nem o suicídio. É como uma biografia de Tiradentes que só fosse até o momento em que ele chega ao cárcere, sem barba. E que não o acompanhasse à forca.
"Getúlio Vargas, meu Pai" nos deixa, assim, sem o principal. Não em relação aos fatos e suposições que cercam a morte de Vargas e que podemos encontrar em outros livros e depoimentos, inclusive de Alzira ela própria. Em relação ao que Getúlio pensou e sentiu.
Para meu próprio entendimento, por exemplo, há muito tempo dividi Getúlio Vargas em 1º e 2º, como os nossos imperadores. Getúlio 1º não admirei nunca, enquanto o 2º tem meu voto. Getúlio 1º reinou de 1930 a 1945 e teve seu "annus terribilis" em 1937, quando promulgou sua Constituição fascista e se tornou ditador de fato. (Destaque-se esse persistente número na sua biografia: Getúlio ocupou na Academia Brasileira de Letras a cadeira 37).
Quando li o livro de Alzira ao tempo da sua publicação me convenci, e continuo convencido de que Getúlio realmente se considerava então um homem marcado pelo destino para grandes feitos. Guardava, por trás da fumaça de um havana que só a morte apagou, a arrogância de quem descobrira, com bastante razão, que o Brasil estava ainda por fazer e que ele o faria.
Pois num dos diálogos quase teatrais do livro (aliás Alzira e Getúlio, como bons gaúchos, se tratam por "tu", o que dá à conversa um vago ar de teatro lusitano, ou brasileiro pré-Nelson Rodrigues) Alzirinha interpela o pai: "Podes me explicar em termos chãos, ao alcance do meu cérebro, o por que e para que (...) da Constituição, nos termos em que está feita? Já dei a várias pessoas, inclusive a jornalistas e correspondentes estrangeiros, explicações, as mais inteligentes possíveis. Eles se satisfizeram com isso, mas eu não. Queria uma explicação só para mim". Getúlio, como narra Alzira, "acendeu o charuto, procurou ou fingiu procurar com cuidado a caneta que estava bem diante dos seus olhos", mas a filha, em pé de guerra, não lhe dá trégua.
"Ou me explicas essa trapalhada, essa mistura de Armando, Benedito, Flores, Osvaldo, Goes, Filinto, Dutra, Campos, Plínio e não sei quantos mais, ou então eu estou fazendo papel de palhaço, explicando o que eu própria ainda não entendi". Getúlio, afinal, começa paciente, dizendo que todas as Constituições que o Brasil já teve "foram redigidas às pressas e sob a pressão dos acontecimentos", mas de repente abre o jogo naquela bela relação político-amorosa do pai e filha e resolve pagar na mesma moeda, quando a filha lhe atira em rosto que ele sequer marcou data do plebiscito em que as massas diriam sim ou não à "polaca" de 1937.
Diz ele: "Ficaste obtusa de repente? Ainda não entendeste porque não determinei a realização do plebiscito? Já não te disse que a Constituição de 1937 é apenas uma tentativa, uma experiência? Se der resultado o povo terá tempo suficiente para saber, depois de passado o perigo, se a quer como definitiva ou não". E Alzira comenta: "Fiquei furiosa. Tanto trabalho por causa de um negócio provisório! Tanto medo de um fantasma de papel e tinta, manobrado por um homem de verdade! Quando quis, pelo menos, empatar o escore do placar a meu favor, perguntando por que não havia dito isso antes, deu de ombros, recomeçando a trabalhar: 'Ninguém me perguntou'."
Aí está. Getúlio 1º, ao ser deposto em 1945, deve ter ficado magoado com os brasileiros ingratos. Mas soube, no exílio que a mim, na época, pareceu matreiro e calculista, forjar em si mesmo Getúlio 2º, uma extraordinária figura de estadista, executado com dois tiros, o da madrugada de 5 de agosto de 1954, rua Toneleros, e o da manhã de 24 do mesmo mês e ano, Palácio do Catete.
Infelizmente não temos mais, para o epílogo da vida de Getúlio Vargas, seus diálogos na segunda pessoa do singular com a filha querida. Não é que Alzira, passados tantos anos, se houvesse afastado do pai, mas não era mais a secretária, a ouvinte de todas as horas. Ao pai acorreu, depois do tiro de Toneleros, e lhe fez companhia assídua nos dias agônicos. No Palácio do Catete, Alzira mantinha, uma conversa telefônica com o general Ciro do Espírito Santo Cardoso (ex-ministro da Guerra de Getúlio, parente do atual candidato FHC) sobre a debochada "licença definitiva" que era concedida ao presidente da República, quando precisou interromper o telefonema. No seu quarto de dormir, Getúlio acabava de se matar.
E ficamos sem as razões íntimas dos últimos momentos. Ninguém lhe perguntou nada.

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